terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Coimbra, 18 de Fevereiro de 1927: José Régio a João Gaspar Simões

Coimbra, 18 de Fevereiro de 1927

Meu caro Simões:

Recebi  a sua carta, justamente quando pensava em lhe escrever. Muito lhe agradeço o ter pensado tanto no jornal e em mim que se me antecipou. As notícias são: O Branquinho partiu há 8 dias para Lisboa, de modo que fiquei sozinho em Coimbra a preocupar-me com a saída do primeiro número da Presença. Escrevi a alguns presuntivos colaboradores da dita, e recebi: Versos do António Navarro (de que Você gostará mais que do Soneto da Contemporânea); informação do Mário Saa de me mandar brevemente qualquer coisa; informação do Martins de Carvalho de mandar também brevemente um trecho da sua dissertação; esperanças do meu irmão de também brevemente mandar um desenho com algumas palavras sobre arte. Logo que todos estes «brevemente» sejam «presente» -- o número sairá. Além desta colaboração, o primeiro número terá: Versos do Branquinho, do Bettencourt e do Fausto; prosa sua, do Almada e minha. Como vê, já a dificuldade de encher espaço vai sendo substituída pelo do espaço para conter... No entanto tudo se arranjará, e creio que o primeiro número da «Presença» gritará de facto: Presente! Peço-lhe para mandar o seu artigo logo, mesmo logo, que esteja pronto. Queria escrever-lhe mais, mas escrevo-lhe da Central, e com uma pena de tinta permanente... Quer isto dizer que a tinta me falta a cada palavra que escrevo, porque nunca me afiz a semelhantes viadutos de tinta. Escreva, sim? e, uma pergunta: Quando vem dar uma fugida cá?
Saudades dos amigos, e um abraço do
José Maria dos Reis Pereira


in João Gaspar, José Régio e a História do Movimento da «presença» , Porto, 1977


Nota - Tem essencialmente interesse documental, porque trata do início da presença, uma das mais importantes, talvez a mais importante e interessante revista literária portuguesa do século XX, cujo n.º 1 sairia a 10 de Março seguinte. 

O irmão de Régio era, obviamente, o pintor Júlio [Maria dos Reis Pereira], que foi também o grande poeta Saul Dias.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Roma, 1 de Janeiro de 1675: o Padre António Vieira a Duarte Ribeiro de Macedo (1.I.1675)



Senhor meu:

     Escrevo estas poucas regras no primeiro dia do ano, o qual me acha na cama, aonde me tem reduzido o achaque do estômago, de que no passado dei conta a V. S.ª. E, depois de desejar a V. S.ª muitos anos e felicíssimos, temo muito que este seja o último da minha vida, principalmente se, na consulta que amanhã se há-de fazer dos médicos, eles não acabarem de se persuadir que o clima de Roma é a causa principal e ordinária deste achaque, e não me receitarem a mudança de ares, não passando aos vizinhos por alguns dias, como querem os amigos, mas caminhando aos pátrios. Pode ser, como eu espero, que seja providência divina, para que assim cessem os impedimentos, e se componham os que me detêm aqui, como me querem antes vivo em Portugal que morto em Roma. Se bem não deixo de considerar quão pouco para desejar nem viver está hoje aquela terra, e quantos desgostos e perigos pode temer nela quem incriminado está, posto que falsamente, no delito que lá se começou e aqui se prossegue, com terríveis ameaças e profecias fulminadas contra todos os cúmplices dele. O nosso Residente é [tão] prudente que, sem embargo das repetidas ordens que tem de não falar por uma nem por outra parte, as interpreta de tal modo que no público e no particular se mostra em tudo parcial dos dois enviados. Mas que muito, se em Lisboa foi chamado à Inquisição um dos nossos maiores ministros, para ali se achar em um conselho, e do que nele se praticou e resolveu foi avisar a Rainha Nossa Senhora que, se S. A. não acudisse a impedir algumas ordens, ou já notificadas ou expedidas de Roma em ordem à suspensão de actos de Fé e semelhantes execuções enquanto se não decidisse o pleito, soubesse que estava em risco de haver um motim. Deste aviso e deste conselho, e de entrar nele um Conselheiro de Estado, e de ter confiança para se entremeter em tudo isto sem licença nem autoridade, e de dizer o que disse e ameaçar o que ameaçou, sem se puxar por este fio e desenovelar uma tal matéria, julgue V. S.ª o que lhe parecer, que eu julgo sòmente o que a V. S.ª parece, e quanto para temer é o mesmo silêncio e quietação, de que se dá por tão seguro o ministro que a V. S.ª escreve.
     De novo só posso dizer o que também me acrescenta não pouco este temor, e com o mesmo me o escrevem de Lisboa concordemente três pessoas, que eu reputo pelas mais zelosas ao serviço de S. A. e bem do Reino, sem mais interesse que o mesmo bem: e é que, poucos dias antes do último correio, partindo aos 13 de Novembro, se tinha ouvido em Lisboa um Jonas pregando: Adhuc quadraginta dies et Ninive subvertetur. Este homem, que pode ser seja conhecido de V. S.ª, é um capitão, grande poeta vulgar, chamado antigamente António da Fonseca, o qual se meteu frade de S. Francisco haverá oito ou dez anos, e hoje se chama Frei António das Chagas. Haverá dois ou três anos começou a pregar apostòlicamente, exortando à penitência, mas com cerimónias não usadas dos Apóstolos, como mostrar do púlpito uma caveira, tocar uma campainha, tirar muitas vezes um Cristo, dar-se bofetadas, e outras demonstrações semelhantes, com as quais, e com a opinião de santo, leva após si toda Lisboa.
     Prega principalmente na igreja do Hospital, concorrem fidalgos e senhoras em grande número, e uma vez lançou do púlpito entre elas um crucifixo, a que se seguiram grandes clamores; e com isto se entende que o dito pregador tem na mão os corações de todos, e os poderá mover a quanto quiser, temendo-se que, se seguir a opinião ou apreensão vulgar, e se meter no ponto da Fé, poderá ocasionar algum alvoroço semelhante ao do tempo de El-Rei D. Manuel, não longe do mesmo lugar onde prega. E verdadeiramente que a consideração do lugar, a circunstância do tempo, a disposição dos ouvintes; e ser o Jonas soldado, poeta e frade; e não acudirem a estas extravagâncias os que costumam fazê-lo com menores fundamentos; prenúncios podem ser de alguma tempestade, que, se não se levantou nos primeiros dias, pode ser que se vá armando para o fim dos quarenta, que tantos são os sermões que tem prometido, e vai sucessivamente continuando todos os dias.
     Algum ou alguns dos mesmos que me fazem este aviso propuseram o seu temor a quem devera remediar, mas sem efeitos. Assim costumam ser os das fatalidades, e a minha melancolia é mais pronta a querer em desgraças que em felicidades.

     Deus guarde a V. S.ª como desejo.

     Roma, 1.º de Janeiro de 1675 -- Capelão e criado de V. S.ª

António Vieira



In Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal (2.ª ed., 1951), recolhida na edição Sá da Costa da Cartas (1951), por António Sérgio e Hernâni Cidade.


Nota - Dirigida a Duarte Ribeiro de Macedo, então enviado em França, excelente sobre o ambiente persecutório e o poder da Inquisição, cuja chaga purulenta ainda hoje se escarva e se escarra na tristíssima sociedade portuguesa. 

O retrato do fascinante Frei António das Chagas é esplêndido, bem como a arguta noção de Vieira dos perigos do prègador iluminado e alucinado -- qual pastor tele-evangelista --, o receio pelo que, às mãos da turba poderiam sofrer os cristãos-novos; evocando o massacre dos judeus ocorrido em Lisboa no reinado de D. Manuel I, cujo memorial há uma década foi erigido nesse Largo de São Domingos de nefanda memória, e que hoje, ironia da História, é local de cruzamento étnico das mais desvairadas religiões e dos que não têm religião nenhuma.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

1888: Oliveira Martins a Luciano Cordeiro


Meu querido Luciano

Vibrei, certamente, vibrei todo o dia ontem, lendo a sua primorosa obra. V. fez um milagre. Não queria escrever-lhe agradecendo-lhe o seu livro antes de o ler, e não o fiz logo porque o tinha emprestado ao Moniz Barreto para ele escrever o artigo que lhe pedi e V. já leu, decerto.
 O Repórter cumpriu o seu dever.
 O livro das Cartas que V. fez é verdadeiramente definitivo, não há nada mais a dizer.
V. esgotou a erudição e a crítica: não há que rebuscar nem que observar mais.
Está definido o caso patológico (?) e determinado o concurso de circunstâncias que se deu.
Receba pois V., meu querido Luciano, os meus mais cordiais parabéns e creia-me sempre -- Seu velho amigo, de uma amizade sempre moça.

Oliveira Martins





in Sóror Mariana Alcoforado, Cartas de Amor ao Cavaleiro de Chamilly, Porto, Editora Ausência

edição de Luciano Cordeiro [1888]


Nota - Oliveira Martins (1845-1890), director de O Repórter, agradece, com os maiores encómios, a Luciano Cordeiro (1844-1900), o envio de Sóror Mariana, a Freira Portuguesa (1888). Esta é a primeira de quatro cartas de homens públicos enviadas a Cordeiro, que sustentava tratar-se as Lettres Portugaises do punho de Mariana Alcoforado, o que continua a ser controverso.






terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

c. 1878: Ramalho Ortigão a sua mulher, Emília


Querida Emília  -- Pelo que me dizes na tua carta de que passa muita gente -- que passa tudo! -- na rua em que está a casa da mãe, vejo que o que fazes é estar à janela em vez de saíres à maneira do Porto. Isso é o hábito mais anti-higiénico, mais burguês e mais ordinário que há. Peço-te o obséquio especial de não frequentares a janela. As janelas fizeram-se para alumiar as casas, e arejá-las, não se fizeram para ter senhoras penduradas. À janela para quê? Para ver a vida alheia, para olhar para as vizinhas, para ver os vestidos? Isso é de criada de servir. Que as vizinhas façam o que quiserem, que as outras passeiem como lhes apetecer, e que se vistam como entenderem; nós não temos nada com isso. Senhora janeleira faz-se linguareira, invejosa, maldizente e ruim. Mulher de janela, ou pública ou tola. Ainda se é uma janela de onde se descobre o mar, as florestas, os acidentes de uma paisagem e o ar livre e puro, ainda se compreende. Mas na rua da Senhora da Luz ou de S. Bartolomeu! É indecente. Rogo-te a fineza de passeares, de ires para Carreiros, para a costa, para a praia, para a beira do mar. Dize à Júlia da minha parte que se quiser filhos robustos, os não tire nunca da areia. Lembra-te dos benefícios (?) de crianças que Michelet manda construir à beira-mar. Os pequenos não devem sair nunca da areia, mesmo da areia húmida, porque a humidade do mar não constipa nem produz reumatismos, cura-os. Os pequenos como devem andar nas praias é nus. Como se devem enxugar da onda é na areia quente pelo sol. Assim é que se criam os fortes, e se regeneram os homens. Quem o pode fazer e o não faz aos seus pequenos tem uma grande responsabilidade diante da higiene e da humanidade.
 Sai, sai, sai, sai, sai, sai, sai! é o que te digo com muitos abraços do teu amigo do C

RAMALHO




Ramalho Ortigão, Cartas a Emília, Lisboa, 1993.
(edição: Beatriz Berrini)

Nota - Carta que, escrita há quase 150 anos, não suscita grandes comentários, só o deleite da leitura da escrita cristalina da ramalhal figura (Eça de Queirós) e a mania que ele tinha da saúde, da higiene, do desporto.