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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Paris, 6 de Agosto de 1894: Eça de Queirós a Alberto de Oliveira

Paris, 6 Agosto 1894.


Ex.mo e caro amigo:


Não me queira mal, ou esqueça o mal que me tenha querido por eu só tão tarde ter agradecido o elegante livro.
«O coração põe e a Vida dispõe»: e a minha tão tiranicamente se tem comportado que não me deixa tempo para cumprir uma obrigação logo que a ela se mistura muita devoção.
Foi com alvoroçada simpatia que abri as folhas das Palavras Loucas. Mas Loucas porquê? Através delas só entrevi Razão, e madura, ou na fácil véspera de amadurecer. E nelas próprias só vi precisão, limpidez e ritmo que são qualidades de Razão e das melhores. É por esta linda arte de bem-dizer que eu o quero sobretudo louvar, -- ou antes felicitar, porque a Prosa é um dom, e dos Deuses, como a Beleza. Enquanto às suas ideias -- não lhe parece que o Nativismo e o Tradicionalismo, como fins supremos do esforço intelectual e artístico, são um tanto mesquinhos? A humanidade não está toda metida entre a margem do rio Minho e o cabo de Santa Maria: -- e um ser pensante não pode decentemente passar a existência a murmurar estaticamente que as margens do Mondego são belas! Por outro lado o Tradicionalismo em Literatura já foi largamente experimentado, durante trinta largos anos, de 1830 a 1860 -- e certamente não resultou dele aquela renovação moral que Portugal necessita, e que o meu amigo dele espera. Tivemos xácaras e romanceiros, e lendas e solaus, e moiros, e beguinos, e besteiros, e sujeitos blindados de ferro que gritavam com magnificência -- «Mentes pela gorja, D. Vilão!» -- e uma porção imensa de Novelística popular, e paisagens Afonsinas com torres solarengas sobre os alcantis, e tudo o mais que o meu amigo reclama como factor essencial de educação... E de que serviu tudo isso para o aperfeiçoamento dos caracteres e das inteligências, ou sequer para a sua renacionalização? De resto, o movimento Tradicionalista, cuja ausência o meu amigo lamenta, ainda não cessou, está em torno de si. Tomás Ribeiro, Chagas e toda a sua descendência literária, são tradicionalistas. E esses «Príncipes Perfeitos» e Duques de Viseu, e Pedros Cruz , e D. Sebastiões que frequentam o palco de D. Maria não creio que tivesse chegado aí, de Paris, pelo sud-express. E o resultado?...
Não, caro amigo, não se curam misérias ressuscitando tradições. Se a França, depois de 1870, tivesse resumido o seu esforço em renovar na Literatura as Chansons de Geste , ainda cá estavam os Prussianos. O dever dos homens de inteligência num país abatido, tem de ser mais largo do que reconstruir em papel o Castelo de Lanhoso ou chamar as almas a que venham escutar os rouxinóis do Choupal de Coimbra.
Em todo o caso o grito do Tradicionalismo é um belo grito, sobretudo quando nos chega numa voz tão polida, e culta, e penetrante, e elegante como a sua. E aqui volto ao meu primeiro louvor, o da forma excelente, tão fina e luminosa, que reveste todo o seu livro. Quando se possui um tão belo instrumento, deve-se tocar uma ária mais larga e mais profunda que a do neo-medievalismo e do neo-trovadorismo. E, a propósito, o que é o Neo-Garrettismo? Estou com muita curiosidade de saber a que nova concepção do Universo, a que novo método Científico, ou a que feitio original do espírito crítico, deu o seu grande nome o mestre genial do Frei Luís de Sousa. Se o Neo-Garrettismo é um sistema que nos habilitará, a todos, a fazer Frei Luíses de Sousas e Autos de Gil Vicente, então, por Júpiter! sejamos todos neo-garrettistas com fervente entusiasmo! Para me explicar todas estas coisas e sobretudo para o ver e abraçar é que eu desejo vivamente que se realize a sua vinda a Paris, que há tempos me foi anunciada por um amigo. É para este Outono?
E o António Nobre? Sei que ele está em Paris: mas esse moço encantador, desta vez, nem sequer me quis dar o gosto de saber onde instalara os seus lares. Da sua morada, onde quer que ela seja, à minha, não haverá (dada a extensão de Paris) mais de meia hora de fiacre. Eu, porém, que sou um fiel ledor de Homero, sei quanto custa aos Deuses descerem do Olimpo. Já o dizia Hermeias (vulgo Mercúrio) a Kalipso, que como sabe, morava burguesmente numa ilha do Arquipélago: -- «Cuidas que não é uma grande maçada descer dos sólios estrelados, para vir a estes tristes sítios mortais, onde nunca se respira um bocado de bom incenso nem se bebe um bocado de bom néctar?». -- Mas nisto se engana o meu amigo, porque se eu o desejava ver era justamente para lhe repetir quanto o estimo, e para bebermos juntos um pouco de Médoc, que é o desconsolado néctar destes tempos. Quando lhe escrever ralhe com ele, docemente.
E, enfim, caro amigo, um bom abraço, depois desta tagarelice, e agora, e sempre, me creia, fielmente

Seu muito dedicado

Eça de Queirós
Nota - Publicada por Alberto de Oliveira, Eça de Queiroz -- Paginas de Memorias, Lisboa, Portugal-Brasil Sociedade Editora, 1919. Um prodígio de humor e ironia, a propósito do vezo tradicionalista de Alberto de Oliveira e o neo-garretismo  -- expressão que lhe pertence, que se estende às peculiaridades do seu muito próximo António Nobre. Ao contrário do que alguns pensam, e gostariam, o Eça nem com o aproximar-se do fim foi um reacionário.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Lisboa, 29 de Junho de 1884: Cesário Verde a Mariano Pina



Mariano Pina, meu caro Director


    A sua «Ilustração» impressa neste tumultuoso Paris, em grande formato, composta por tipógrafos franceses que devem achar muito drôle a abundância do «til» e a falta do «acento grave», anunciada com réclames estonteantes e um taraze ensurdecedor nesta pacífica Lisboa tão morna e tão dorminhoca, a sua «Ilustração» duma tiragem muitíssimo reparável, fez-me nascer o desejo de lhe oferecer a Você a minha colaboração. Conquanto V. não me enviasse o seu cartão de convite, o meu ideal de luxo e a minha pretensão de ver os meus versos numa elegante toilette parisiense, instigam-me a recomendar-lhe um pequeno poema que fiz com todo o esmero de que sou capaz, e cujas provas eu quereria ver pessoalmente no caso de ser publicado. Compõe-se de heróicos e alexandrinos, numas 130 quadras que no tipo miúdo (como é mais distinto e mais discreto para a poesia) encherão essas colunas de Hércules durante pouco mais de 2 páginas.

     Mas a direcção literária ou administrativa duma publicação como a sua tem dificuldades. Você tem de consultar os grossos apetites dos seus leitores e os fastios nevrálgicos das suas leitoras, e realmente eu não sei se o devia embaraçar com esta exigência.

      Em todo o caso sempre lhe direi que é um trabalho réussi, correcto, honesto e dum sentimento simples e bom. Chama-se «Nós», e é talvez a minha produção última, final. Trato de mim, dos meus, descrevo a propriedade no campo em que nos criámos, a fartura na vida de província, as alegrias do labor de todos os dias, as mortes que tem havido na nossa família e enfim os contratempos da existência. Para animar tudo isso, para dar a tudo isso a vibração vital, eu empreguei todo o colorido, todo o pitoresco, todo o amor que senti, que me foi possível acumular.

     Ora como esta obra começa com a descrição da Febre-amarela e do Cholera-morbus quando nós fugimos em crianças, lá para fora, e depois continua com as descrições do nosso verão adusto e forte; e como nós agora estamos com a ameaça da epidemia e Julho e Agosto vão começar, eu pretendia que estas coincidências convergissem, publicando imediatamente.

     É uma paixão pela arte que me faz pensar assim, não julgue V. crueldade. A famosa ciência de Pasteur e dos outros há-de atalhar o mal e o pavor será a maior dor que se sentirá.

     Outra coisa: Sabe V. que tenho saudades desse aborrecido mês que vivi em Paris tão contrariado e esmagado, e que hoje fiz volte-face, e agora digo constantemente bem dessa França, desses Franceses e dessas Francesas, como um doido ou um apaixonado?

     Bem, escreva-me Você sem demora com a sua decisão.

     Seu confrade amigo e obrigado

Cesário Verde


Rua dos Fanqueiros, 2 -- Lisboa

in Elza Miné, Mariano Pina, a Gazeta de Notícias e A Ilustração: Histórias de Bastidores Contadas por Seu Espólio, separata da Revista da Biblioteca Nacional, s.2, vol. 7 (2), Lisboa, 1992. 

Nota - Do sentido da oportunidade. (Pina era director da Ilustração, que se
publicava em Paris.) Carta emocionante do enorme e pobre Cesário (1855-1886) sobre um dos seus grandes poemas. Emocionante, porque vê-loouvi-lo falar da sua obra resgatada por Silva Pinto à dispersão, é, de algum modo, trazê-lo de além-túmulo ao nosso convívio. Bendito Mariano Pina, autor menor, porém influente da universo literário português de oitocentos.