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quarta-feira, 20 de março de 2019

Fontanelas, 6 de Abril de 1966: Vergílio Ferreira a Alberto da Costa e Silva

Fontanelas, 6 de Abril de 1966.

Caríssimo Alberto,
Foi uma grande alegria receber notícias tuas e à falta de uma boa cavaqueira nesta Lisboa que se me vai envelhecendo rapidamente, aqui estou a conversar contigo enquanto a noite não vem de todo. Entretanto espero que tenhas recebido um romance meu -- Alegria Breve -- que te dirá talvez mais de mim do que direi aqui. É uma confissão de cansaço e daí talvez que o estejam aceitando. Porque estamos todos tão cansados. Por mim venho-me habituando de há muito e por isso a fadiga entrou sem fazer mossa. Mas os camaradas da ortodoxia estão aflitos. A famosa História está sempre jovem; eles casaram com ela, mas já estão velhos para lhe darem despacho. Assim se lamentam pelos cantos, enquanto a bela História os vai corneando alegremente.
E assim é que, meu caro Alberto, os meus ensaios os não molestaram muito. Os problemas caseiros correm-lhes mal e quase é um conforto que outros lhos lamentem. Porque isto vai mesmo mal. Na política, mas antes na cultura. Tudo evolui tão rapidamente, que está a gente a chorar uma desgraça e já outra bate à porta. Com as desgraças dos ortodoxos não me importo muito. Mas há as minhas -- há as nossas. Já reflectiste um pouco no que vai pela Arte? O mundo atravessa uma crise da puberdade e, como a natureza nesta quadra da primavera, está pondo a casa em ordem. Mas por ora deita apenas fora os trastes velhos, como a natureza se limpa do que já apodreceu. O pior é que já cá não estarei -- nem talvez tu -- quando tudo for mobilado de novo.»
A Arte é a grande reveladora da vida. E é por isso que ela se despedaça. Mas antes isso que o museu de Grévin. E os bonecos de cera que nos queriam impingir. Tudo isto é fímbria -- dirás tu -- e efeito passageiro desta Semana de Trevas. Não é. Além de que sempre tenho procurado assumir tudo -- mesmo os funerais. Assim os aceito em calma sufocante como os casamentos. Que a sorte me proteja com a mesma calma quando o meu funeral se aproximar.
Pouco contas de ti, da Verinha, dos meninos. Verinha melhor? Vocês fazem muita falta. Sabíeis construir um recanto bem agradável para um refúgio desta estopada que é Lisboa. Tu, por exemplo, deves ter seguido algum curso altamente especializado para fazer amigos. Ou veio-te isso no sangue? Porque os breves anos aqui passados deixaram uma grande saudade em todos os que te conheceram.
E tu, não tens escrito? Deixaste a lira por cá? Ela tinha pelo menos, com efeito, algumas cordas portuguesas.
Um grande abraço da Regina e meu para Verinha e para ti.

Vergílio


Nota - in JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 6 de Janeiro de 2016, número dedicado ao centenário do nascimento de Vergílio Ferreira. Tanto Alegria Breve como o primeiro volume de Espaço do Invisível são de 1965, enquanto que em 1966, ano desta carta, Neste ano, Alberto da Costa e Silva publicará Livro de Linhagem (1966).


terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Paris, 6 de Agosto de 1894: Eça de Queirós a Alberto de Oliveira

Paris, 6 Agosto 1894.


Ex.mo e caro amigo:


Não me queira mal, ou esqueça o mal que me tenha querido por eu só tão tarde ter agradecido o elegante livro.
«O coração põe e a Vida dispõe»: e a minha tão tiranicamente se tem comportado que não me deixa tempo para cumprir uma obrigação logo que a ela se mistura muita devoção.
Foi com alvoroçada simpatia que abri as folhas das Palavras Loucas. Mas Loucas porquê? Através delas só entrevi Razão, e madura, ou na fácil véspera de amadurecer. E nelas próprias só vi precisão, limpidez e ritmo que são qualidades de Razão e das melhores. É por esta linda arte de bem-dizer que eu o quero sobretudo louvar, -- ou antes felicitar, porque a Prosa é um dom, e dos Deuses, como a Beleza. Enquanto às suas ideias -- não lhe parece que o Nativismo e o Tradicionalismo, como fins supremos do esforço intelectual e artístico, são um tanto mesquinhos? A humanidade não está toda metida entre a margem do rio Minho e o cabo de Santa Maria: -- e um ser pensante não pode decentemente passar a existência a murmurar estaticamente que as margens do Mondego são belas! Por outro lado o Tradicionalismo em Literatura já foi largamente experimentado, durante trinta largos anos, de 1830 a 1860 -- e certamente não resultou dele aquela renovação moral que Portugal necessita, e que o meu amigo dele espera. Tivemos xácaras e romanceiros, e lendas e solaus, e moiros, e beguinos, e besteiros, e sujeitos blindados de ferro que gritavam com magnificência -- «Mentes pela gorja, D. Vilão!» -- e uma porção imensa de Novelística popular, e paisagens Afonsinas com torres solarengas sobre os alcantis, e tudo o mais que o meu amigo reclama como factor essencial de educação... E de que serviu tudo isso para o aperfeiçoamento dos caracteres e das inteligências, ou sequer para a sua renacionalização? De resto, o movimento Tradicionalista, cuja ausência o meu amigo lamenta, ainda não cessou, está em torno de si. Tomás Ribeiro, Chagas e toda a sua descendência literária, são tradicionalistas. E esses «Príncipes Perfeitos» e Duques de Viseu, e Pedros Cruz , e D. Sebastiões que frequentam o palco de D. Maria não creio que tivesse chegado aí, de Paris, pelo sud-express. E o resultado?...
Não, caro amigo, não se curam misérias ressuscitando tradições. Se a França, depois de 1870, tivesse resumido o seu esforço em renovar na Literatura as Chansons de Geste , ainda cá estavam os Prussianos. O dever dos homens de inteligência num país abatido, tem de ser mais largo do que reconstruir em papel o Castelo de Lanhoso ou chamar as almas a que venham escutar os rouxinóis do Choupal de Coimbra.
Em todo o caso o grito do Tradicionalismo é um belo grito, sobretudo quando nos chega numa voz tão polida, e culta, e penetrante, e elegante como a sua. E aqui volto ao meu primeiro louvor, o da forma excelente, tão fina e luminosa, que reveste todo o seu livro. Quando se possui um tão belo instrumento, deve-se tocar uma ária mais larga e mais profunda que a do neo-medievalismo e do neo-trovadorismo. E, a propósito, o que é o Neo-Garrettismo? Estou com muita curiosidade de saber a que nova concepção do Universo, a que novo método Científico, ou a que feitio original do espírito crítico, deu o seu grande nome o mestre genial do Frei Luís de Sousa. Se o Neo-Garrettismo é um sistema que nos habilitará, a todos, a fazer Frei Luíses de Sousas e Autos de Gil Vicente, então, por Júpiter! sejamos todos neo-garrettistas com fervente entusiasmo! Para me explicar todas estas coisas e sobretudo para o ver e abraçar é que eu desejo vivamente que se realize a sua vinda a Paris, que há tempos me foi anunciada por um amigo. É para este Outono?
E o António Nobre? Sei que ele está em Paris: mas esse moço encantador, desta vez, nem sequer me quis dar o gosto de saber onde instalara os seus lares. Da sua morada, onde quer que ela seja, à minha, não haverá (dada a extensão de Paris) mais de meia hora de fiacre. Eu, porém, que sou um fiel ledor de Homero, sei quanto custa aos Deuses descerem do Olimpo. Já o dizia Hermeias (vulgo Mercúrio) a Kalipso, que como sabe, morava burguesmente numa ilha do Arquipélago: -- «Cuidas que não é uma grande maçada descer dos sólios estrelados, para vir a estes tristes sítios mortais, onde nunca se respira um bocado de bom incenso nem se bebe um bocado de bom néctar?». -- Mas nisto se engana o meu amigo, porque se eu o desejava ver era justamente para lhe repetir quanto o estimo, e para bebermos juntos um pouco de Médoc, que é o desconsolado néctar destes tempos. Quando lhe escrever ralhe com ele, docemente.
E, enfim, caro amigo, um bom abraço, depois desta tagarelice, e agora, e sempre, me creia, fielmente

Seu muito dedicado

Eça de Queirós
Nota - Publicada por Alberto de Oliveira, Eça de Queiroz -- Paginas de Memorias, Lisboa, Portugal-Brasil Sociedade Editora, 1919. Um prodígio de humor e ironia, a propósito do vezo tradicionalista de Alberto de Oliveira e o neo-garretismo  -- expressão que lhe pertence, que se estende às peculiaridades do seu muito próximo António Nobre. Ao contrário do que alguns pensam, e gostariam, o Eça nem com o aproximar-se do fim foi um reacionário.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Santa Eufémia, Córdova, 16 de Novembro de 1870: Oliveira Martins a António Enes


S.ta Eufémia, 16 de Novembro.


Meu caro Enes


     Há já bastante tempo que recebi a tua boa mas desalentada carta. Compreendo o que sentes, porque o senti já, enquanto não tomei a resolução heróica de viver só para comer, e sentir alguma coisa semelhante, á vita della bestia do Maquiavel. O trabalhar e elevar o espírito no convívio humano e existir dentro da Sociedade Culta (?) é, quer-me parecer, impossível. Nós formamos hoje, em Portugal, principalmente, aquilo que a ex-França chamou os declassés. Deita-te ao bispo ou ao Fontes ou ao Ávila, e verás como és homem! Mas tu não podes e dou-te os parabéns por isso. Que vives e reages, vejo eu também, porque além do teu opúsculo, que peço desculpa de não te ter agradecido ainda, tenho seguido a tua polémica com o Testa no J. do C.  -- Dum e doutro dos teus trabalhos, que além da atenção que em si merecem, me mereciam a mim, aquela que se deve a um amigo, te direi o que penso.
     Parece-me que o teu ataque ao Testa, que bem escrito, erudito, sério e elevado, era fraco num ponto essencial, fundamental, direi mesmo, a filosofia do direito. Em virtude de quê entraram os italianos em Roma? Em virtude do direito revolucionário, liberal, etc. E o Testa nesta parte responde-te bem. Meu amigo é necessário dizer as cousas pelos seus nomes e romper com certas banalidades, que não têm razão de ser. Tu não querias impugnar a grande banalidade -- a força não dá direito: uma conquista é um facto, não é um direito. Eu tratando essa questão, diria abertamente: a força é direito a conquista é um direito. É só neste terreno que quanto a mim se pode (e deve) defender a entrada dos italianos em Roma. Quanto ao mais, pouco se me dá que a oligarquia burguesa do governo italiano substitua a oligarquia clerical do governo romano. Duvido que os romanos ganhem muito com a mudança. O plebiscito tem para mim valor igual, ao da recepção de Garibaldi em Nápoles. Já se queixam os napolitanos.
     Lembra-te de que o orçamento da despesa do governo italiano, é o quíntuplo da soma do de todos os estados anexados, antes de 59. Não, os governos constitucionais e liberais, não querem, nem a justiça, nem a liberdade, nem são o caminho para ela. Sobre a ruína de instituições caducas, assentam uma casta que vive dum erro económico da sociedade contemporânea -- a burguesia capitalista. Quanto mais sociedades constituto-liberais se formem mais sangrenta será a luta pela revolução e pela justiça. Quanto *a reformação do non possumus papal, seriamente crês nela? Não digas isso, homem; pois não vês que no momento em que Roma dissesse o possumus, tinha morrido e vergonhosamente? Assim ao menos cai no seu posto. Sobre o teu folheto prusso-francês, que li e reli, te direi que me parece muito mais bem pensado e o abraço convictamente. A França era com efeito o país donde nos devia vir a tocsin regeneradora; Mas a França morreu. Poderá substituí-la a Alemanha? Não tenho ideia feita sobre isso. Não conheço e do pouco que sei, tremo muito da Alemanha. Não falo de Bismark e Comp.ª, porque a esses creio eu que foi a guerra um passo agigantado para a ruína. No momento em que a Alemanha se encontrar constituída, há-de varrê-los de casa para fora, e se o não fizer cairá mais depressa, do que caiu a França.
     Desculpa-me tu meu caro Enes esta maçada; o deserto obriga a meditar, e estas noites longas de inverno a conversar com os bons amigos como tu, por esta forma, já que por outra não pode ser. se não fazes nada aí, vem até cá. Asseguro-te que por um mês hás-de distrair-te. A indústria em si tem uma verdadeira poesia, nunca a senti como agora, a serra, os caracteres primitivos do povo e o sabor arabesco das povoações, valem a pena de serem vistos. Economicamente se faz a jornada.
     Minha mulher te pede para te ser recomendada, e eu que, lembrando-me a todos os que de mim se lembrarem, aceites o cordial aperto de mão


                                                                                Do teu amigo


                                                                                                               J. P. Oliveira Martins


Correspondência de J. P. Oliveira Martins, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1926.

(edição: Francisco d'Assis Oliveira Martins)

Nota - A propósito do trabalho de António Enes, A Guerra e a Democracia. Considerações sobre a Situação Política da Europa (1870), Martins expõe o seu conceito antiliberal, que virá a tomar a forma de cesarismo, comenta a entrada das tropas de Vítor Manuel II em Roma, liquidando os Estados Pontifícios e culminando a reunificação de Itália, bem como a delicada Guerra Franco-Prussiana -- cujos efeitos ainda hoje são sentidos.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1934: Jorge Amado a Ferreira de Castro

Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1934.


Meu caro Ferreira de Castro.

Acabo de voltar ao Rio e encontrei na Ariel a sua última carta. Agradeço os seus conceitos sobre Cacau Suor.
Venho de passar quatro meses na Baía, recolhendo um resto de material para um romance sobre negros. Chamar-se-á Jubiabá, nome de um macumbeiro de lá e espero fazer um livro forte, fixando nas duas primeiras partes -- Baía de Todos os Santos e --Grande Circo Internacional -- todo o pitoresco do negro baiano -- música, religião, candomblé e macumba, farras, canções, conceitos, carnaval místico -- e toda a paradoxal alma do negro -- raça liberta, raça das grandes gargalhadas, das grandes mentiras e raça ainda escrava do branco, fiel como cão, trazendo nas costas e na alma as marcas do chicote do Sinhó Branco. A terceira parte --A greve -- será a visão da libertação integral do negro pela sua proletarização integral. Que acha v. do plano?
Lhe envio um Boletim de Ariel onde falo em V. Aliás a nota está besta. Mas vale a intenção. V. recebeu meu artigo sobre Terra Fria? Acuse o recebimento.
Mande dizer o que v. está fazendo. Qual o livro que o preocupa no momento? V. tem um grande público aqui no Brasil. Aliás porque v. não envia pro Ariel uma nota sobre a nova literatura de Portugal? Aqui há um certo movimento intelectual que está fazendo alguma coisa. O público nos apoia intensamente. Compra nossos livros. A crítica, é natural, se divide em descomposturas e elogios. Mande o artigo. Porque v. não aparece aqui de novo? Pelo que depreendo dos seus livros v. esteve por aqui em 24. Gostaria de ser seu cicerone numa viagem longa através do Brasil. Vendo as casas coloniais da Baía. Material que em suas mãos daria romances como A Selva.
Me escreva. Agora não saio do Rio tão cedo. O Lins do Rego está em Maceió onde reside. Mandei em carta suas lembranças para ele.
Abrace o seu amigo e admirador
Jorge Amado
Boletim de Ariel
R. Senador Dantas -- 40 -- 5.º
Rio.








Publicada por Ricardo António Alves, Anarquismo e Neo-Realismo -- Ferreira de Castro nas Encruzilhadas do Século (2002) e na 2.ª edição, refundida, de 100 Cartas a Ferreira de Castro (2006).

Nota - Grande documento, não apenas pela evidência do programa literário de Jorge Amado, como pelo que revela da influência que Ferreira de Castro tinha junto dos jovens escritores nordestinos brasileiros, cuja repercussão na geração neo-realista portuguesa é consabida. Castro e Amado começaram a
corresponder-se neste anos de 1934, mas só travariam conhecimento pessoal em 1948, em Paris, quando o autor brasileiro, então um activo militante comunista. teve de exilar-se. Essa amizade manteve-se e fortaleceu-se ao longo das décadas, tendo, por várias vezes e em diversas situações Jorge Amado evocado Ferreira de Castro, comovidamente. Das evidências dessa forte relação, basta lembrar que o o autor de A Selva é o autor português mais referido em Navegação de Cabotagem, as memórias de Jorge Amado.
Ferreira de Castro viria a ser um dos dedicatários de Jubiabá (1935), um dos romances mais marcantes de Amado.