Mostrar mensagens com a etiqueta José Régio. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta José Régio. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Póvoa de Varzim, 4 de Março de 1968: José Régio ao sobrinho Ramiro

Diana-Bar da
Póvoa de Varzim, pela manhã
4/3/68

Ramiro:

Já recebi duas cartas tuas, pelo menos, -- a última de há quase um mês. Esta demora não significa que eu te esqueça! Bem pelo contrário, lembro-me constantemente de ti, de vós os três. Significa apenas que atravesso um período de grande trabalho, que a minha correspondência aumenta sempre, etc., etc. A minha casa editora resolveu que este ano seria «o ano de José Régio», e manda-me provas sobre provas de livros a reeditar. Como, nestas provas, me não limito a sublinhar as gralhas, pois sempre corrijo o texto, dá-me isso bastante que fazer. Também retomei colaborações jornalísticas; além de estar escrevendo o sexto volume de A Velha Casa e... vá lá uma novidade!: preparar um novo volume de versos! Supunha que já não publicaria mais livros de poesia; mas a experiência da doença, do sanatório, etc., acumulou no meu subconsciente material que exige expressão mais ou menos poética. Enfim, o artista nem sempre faz o que quer: faz o que de momento pode, aproveita o que lhe vem. Como, portanto, escrevo agora bastante, não tenho desenhado nada. Os desenhos são, de certo modo, um substituto da literatura, um outro modo de expressão, quando a literatura se me torna esquiva. Também me faltas tu, à noite, com a tua calorosa curiosidade pelos desenhos que eu fizera... Não quer isto dizer que eu os deixasse de fazer: apenas estão à espera de novas ocasiões propícias.
     Tens muita razão de, como sobrinho meu, te achares com direito (embora o não digas bem assim) a receber os meus livros. Vou, pois, começar a mandar-tos; aos poucos, e sobretudo os que foram ou vão sendo reeditados nas Obras Completas, pois as edições primeiras ou até simplesmente anteriores rareiam cada vez mais. Algumas até já atingem elevado preço! (1)
     Comecei por falar de mim, e era de vós que eu tencionava começar por falar. Saboreei a breve mas viva evocação que fazes de vossa casa; (e o verbo saborear deve ter surgido aqui por uma subconsciente associação, pois me dizes que cheira a fritos, que a Fátima está fazendo fritos...). Também apreciei e agradeço a fotografia em que estás tu, ela, e o meu boneco na parede. Não se pode dizer que essa máscara faça uma companhia muito gentil, mas enfim... é uma lembrança do «ti Zé». Gosto de saber que estás contente, que vos sentis felizes. Ainda bem, oxalá que assim seja sempre! Claro que o casamento não é um perpétuo idílio (mesmo sem «pieguice») e até a Primavera é atravessada por nuvens e momentos sombrios. Não é de um dia para o outro que as pessoas verdadeiramente se conhecem. Mas também penso que a Fátima é boa rapariga, sei que tu não és mau rapaz, e um amor sólido que a intimidade irá confirmando acaba sempre por desfazer as nuvens... Também estou contente, em suma.
     Agora umas notícias breves:
     -- A «casa da madrinha Libânia», própriamente minha ao presente, está mais arrumada: Fiz nela uma espécie de exposição, embora provisória, de coisas a que depois darei um arrumo definitivo. Espero recomeçar as obras sem grande demora, e para as levar até cabo. Depois te falarei de isso.
     -- «Os habitantes daquela Casa» devem ser estreados brevemente em Lisboa. Entretanto vai à Espanha a um festival de curtas metragens. Tem agradado bastante.
     -- Recebi nova proposta para representação do Jacob e o Anjo, pela companhia que já no ano passado se propusera representá-lo. Fiz um grande esforço... e, embora nos mais lisonjeiros termos com que me foi possível dourar a amarga pílula, recusei autorização. Não me parece que essa Companhia e a sua casa de espectáculos reunissem as condições necessárias para um possível, mesmo relativo agrado junto do público. Principia por que o Rei, a Raínha, o Anjo-Bobo exigem certo aspecto físico (vejo-os em grande!) que não encontro nos actores da dita Companhia. Isto... sem falar no Talento necessário à interpretação desses difíceis papéis. O meu caso (das Três peças em Um Acto) é que parece que será representado em Lourenço Marques. Aqui está proibido, e lá não.
     Bem, basta por hoje. Dá lembranças ao teu pai, e diz-lhe que gosto de o saber convivendo assim com a jovem família. Cá recebi, e gostosamente retribuo, os beijos da Fátima, e para ti o abraço do teu velho
Tio Zé
(1) Não seria razão para eu tas não mandar... se tivesse exemplares!




Nota -In Boletim, #1, Centro de Estudos Regianos, Vila do Conde (direcção de Eugénio Lisboa). Uma bela carta familiar, cheia de informações e conselhos quase paternais, de alguém que trocou a constituição duma vida familiar (teve uma filha que morreu criança fruto, creio, de uma relação pouco mais que fortuita) pela dedicação à obra literária que empreendeu durante quarenta anos -- e que obra... Régio pertence também àquela família de escritores que reflecte profundamente sobre a própria obra ficcional, o que não é de admirar, tratando-se de um dos críticos cimeiros, dos mais agudos e informados, do século XX.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Portalegre, Abril de 1939: José Régio a João Pedro de Andrade

Boavista, Portalegre
Abril de 1939
Prezado camarada:




     Desculpe-me esta demora. Não foi a leitura da suas peças que me tomou todo este tempo: Li-as logo que as recebi. Mas queria escrever-lhe devagar e longamente. Afinal... para quê? Além de que adio sempre demasiado as cartas que me proponho escrever como quem escreve um ensaio, -- o que tenho de principal a dizer-lhe é simples; e pode ser dito ao correr pena, conforme sair: Gostei muito das suas peças... e julgo não me ter enganado gostando. O que nas suas críticas me chamara a atenção não fora tanto a justeza ou a não justeza dos juízos (se alguns seus juízos me pareciam justíssimos, outros, tal o sobre o João Falco, pareciam-me injustos) como, sobretudo, um tom de quem diz as coisas sabendo o que diz, «com um saber de experiência feito». O João Pedro de Andrade afigurou-se-me um daqueles homens -- raros em Portugal -- que têm um conhecimento íntimo, profundo, pelo menos de certos aspectos da vida, e nesse conhecimento se estribam quando escrevem. Esses, são interessantes mesmo quando errem ou se enganem: As suas palavras podem não ter a sonoridade própria a certos talentos brilhantes e ocos... mas claro que é preferível, nesta coisa das letras, o som cheio, surdo, duma pancada num muro denso. Julgo eu que se não pode ser grande escritor sendo pequeno homem, e que é preciso ter coisas em si para poder interessar aos outros. Ora através dos seus artigos e críticas, o João Pedro de Andrade parecera-me um desses homens que têm o direito de escrever por alguma coisa terem, de facto, a dizer aos seus semelhantes. Por isso lhe pedi colaboração para a presença. Não tive grande mérito na minha descoberta, pois já outros tinham descobrido o mesmo. E por isso esperei e li com grande curiosidade as suas peças. Ora no meu entender, as suas peças confirmam dum modo muito superior ao das suas críticas isso que eu pressentira: O João Pedro de Andrade tem coisas a dizer; e isto que parece um mínimo de exigência, exigir dum escritor que tenha coisas a dizer, -- não o é; pelo menos, cá na minha linguagem. Além disso o João Pedro de Andrade é sem dúvida uma vocação de dramaturgo. O seu diálogo logo me surpreendeu (desculpe, eu devia escolher outro verbo...) pela rara qualidade de não ser vulgar nem empolado; isto é: de só ter a estilização necessária a todo o diálogo de teatro, e adequada ao assunto, personagens, meio, etc. Mas não achei menos notável a simplicidade, digamos nudez, depuração, com que a acção caminha, desprezando todo o desnecessário, todo o supérfluo, -- ou a vida que anima os personagens, tão diferentes dos retóricos bonecos que por aí nos apresentam em cena. Perante estas qualidades importantíssimas, nem tenho a mínima vontade de entrar numa análise crítica, miúda e restritiva: Naquela vida própria que adquirem personagens de ficção (em Continuação da Comédia) poder-se-á, talvez, descobrir um eco de Pirandello. E adivinho, pois o não chego a constatar, nem sei quê do Ibsen em certas falas ou no ambiente de Uma só vez na vida. Porém Ibsen é daqueles grandes Mestres com quem todos podem aprender sem sacrificar a sua originalidade própria (isto mesmo é o que caracteriza os mestres autênticos...) e qualquer sugestão que Pirandello lhe tenha dado não diminui a originalidade da sua peça num acto. A verdade nua e crua, muito simplesmente dita, é esta: Eu fiquei entusiasmado com as suas peças. E o que me admira, posto em Portugal não sejam estas coisas muito para admirar, é que o João Pedro de Andrade tenha escrito estas peças, e outras, e seja desconhecido como autor dramático. Não terá o meu prezado camarada alguma culpa nisso? É preciso lutar, teimar, impor-se. Eu quereria poder fazer alguma coisa para o poder ajudar nessa empresa. Mas que posso eu senão escrever? Se consente em publicar na presença A Continuação da Comédia, (e digo esta não porque Uma só vez na vida lhe não seja ainda superior, que o é, mas porque a sua extensão dificulta mais o caso) terei nisso verdadeiro prazer. Tínhamos combinado começar a publicar desde o próximo número uma peça inédita de Alfredo Cortês -- Bâton. Mas não recebemos, até hoje, notícia duma resolução definitiva do autor. A sua peça apareceria já no próximo número, no caso de não vir a dele, que tem primazia por uma simples questão de prioridade de tempo. Uma revista tem as suas exigências de equilíbrio no género da colaboração publicada; e por isso poderia este primeiro número da nova série da presença parecer conter demasiado teatro, no caso de saírem a público as duas peças. Já em outro número se poderia melhor admiti-lo. Conhecendo outras peças suas, (que teria muito gosto em conhecer), e obedecendo a uma das intenções da presença, que é estar ao serviço dos verdadeiros talentos que vierem aparecendo, eu escreveria uma nota crítica um pouco desenvolvida sobre um dramaturgo inédito. Fico esperando uma nota sua, e sou o seu camarada e admirador,

José Régio



     P.S. -- Por já ser hoje tarde, lhe não devolvo o seu original de Uma só vez na vida. Para lhe devolver o outro, espero a sua resposta.
In João Pedro de Andrade, Intenções e Realizações da presença na Prosa de Ficção 
(edição de Julieta Andrade)


Nota: Diálogo entre dois dos maiores críticos do seu tempo, e também dramaturgos: «Não se pode ser grande escritor sendo pequeno homem.» A histórica presença quase no fim.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Montpellier, 25 de Novembro de 1934: Vitorino Nemésio a José Régio

Montpellier
(Collège des Écossais,
Plan des Quatre Seigneurs),

25 de Novb.º 1934.


Meu caro José Régio



Deixe-me exprimir-lhe antes de mais, antes da crítica e de tudo a minha admiração, surpresa, encanto, entusiasmo, fé (e que mais?) pela leitura do seu livro. Vou apenas a págs. 258, mas já fui agarrado, senão rigorosamente desde o princípio, desde bastante no começo. Assim é que estou faltando ao planos que traçara: ler o seu livro apenas em viagem, e até onde chegasse a viagem. E é curioso que isto se tenha dado quando uma das coisas que terei a dizer-lhe é que o seu livro não é romance senão por alguns aspectos. Mas veja já, veja imediatamente como a intrusão da crítica numa impressão sincera e complexa é uma coisa limitante, além de poder ser uma espécie de pedrada... Não; o seu livro é uma fortíssima e extraordinária coisa. Extraordinária para nós portugueses; comum talvez só para uma das duas estreitas dúzias de escritores do mundo. E de novo lhe estraguei o que lhe digo com esta inclinação aldeã de colocar a «música» da terra num plano de «música» de outras terras! Nacionalismo, meu caro José Régio, e vícios de uma fácil «Literatura Comparativa», -- manhas de professor... A verdade é que eu queria passar-lhe para aqui, quase sem meditação (e sobretudo sem premeditação) a porção de coisas que estão a flutuar cá dentro e que me vêm jogadas do seu livro: a poesia extraordinária que nele pulsa; a prosa corrente e ao mesmo tempo rara com que é feito -- rigorosa e ondulante, toda afinada pelo timbre português sem perder nada do tom pessoal de quem a escreve e da cadência a ideias e sensações de toda a parte. Nem quero calcular, organizar esta comunicação do que sinto, e é bem triste afinal que as correntes que nos atravessam tenha a necessidade de fios!
Há páginas em que V. atinge a luminosidade de toda a expressão que conseguiu libertar-se dos seus meios ou da consciência deles para chegar à terrível ou inefável nudez do inexprimido -- e lembro esta página a que já cheguei hoje, 26, dia em que continuo esta carta (p. 323). Aí V. justifica involuntariamente, com naturalidade genial, a escolha do Discours de la Méthode p.ª título das duas Mem.as de Jaime Franco, quando é levado a suspeitar da inutilidade do seu «relatório» e da sua possível gaguez em face da «força de sistematização e propriedade da linguagem dos filósofos e dos sábios». Divina gaguez essa que «tritura» (um verbo de V.) as mil e uma contradições do suceder íntimo e do pensamento dele, multiplicado e reproduzido até à saciedade e à dor, recaído depois em novas fornalhas do «monstro» e outra vez levado ao tenso fulgor da reflexão.
Paro por aqui, por que me apeteceria não acabar. Não toco nos motivos porque o seu livro não é inteiramente romance. V. conhece-os. O seu livro, aliás, não sendo romance, é muito mais. E não sei porque me surge como uma dessas mensagens de cumieira: umas Confissões de St.º Agostinho, ou assim. De censurável (e até de fastidioso) só certas páginas em que Serra contracena com os rapazes do Grupo e não se sabe porque motivo -- social e lógico motivo -- se zangam, formalizam, melindram ou amuam. Confesso que aí cheguei muitas vezes a enfadar-me e a amarrotar as páginas, furioso consigo... Mas saio do Jogo da Cabra Cega com uma impressão decididamente forte, muitas vezes empolgada, -- e (deixe-me dizer-lhe) com uma sensação de pequenez minha, da mediocridade dos meus meios, que oxalá o seu exemplo, tornado estímulo, ajude a transformar nalguma coisa de melhor. Um grande abraço do
Nemésio.


Publicada pelo grande regiano que é Eugénio Lisboa, num livro de ensaios que é, também ele, um extraordinário testemunho de agudeza crítica, O Objecto Celebrado, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1999.


Nota - Carta empolgante de Nemésio, com mais de meio livro lido, esse inovador Jogo da Cabra Cega, de Régio, acabado de publicar, e cujo destino seria o da apreensão. Empolgante, nem tanto pelo entusiasmo, contido por vezes, de Nemésio, mas pelo espectáculo que dá do scholar em acção judicativa -- esse mesmo que dez anos mais tarde faria aparecer um dos maiores livros da nossa literatura, Mau Tempo no Canal

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Coimbra, 18 de Fevereiro de 1927: José Régio a João Gaspar Simões

Coimbra, 18 de Fevereiro de 1927

Meu caro Simões:

Recebi  a sua carta, justamente quando pensava em lhe escrever. Muito lhe agradeço o ter pensado tanto no jornal e em mim que se me antecipou. As notícias são: O Branquinho partiu há 8 dias para Lisboa, de modo que fiquei sozinho em Coimbra a preocupar-me com a saída do primeiro número da Presença. Escrevi a alguns presuntivos colaboradores da dita, e recebi: Versos do António Navarro (de que Você gostará mais que do Soneto da Contemporânea); informação do Mário Saa de me mandar brevemente qualquer coisa; informação do Martins de Carvalho de mandar também brevemente um trecho da sua dissertação; esperanças do meu irmão de também brevemente mandar um desenho com algumas palavras sobre arte. Logo que todos estes «brevemente» sejam «presente» -- o número sairá. Além desta colaboração, o primeiro número terá: Versos do Branquinho, do Bettencourt e do Fausto; prosa sua, do Almada e minha. Como vê, já a dificuldade de encher espaço vai sendo substituída pelo do espaço para conter... No entanto tudo se arranjará, e creio que o primeiro número da «Presença» gritará de facto: Presente! Peço-lhe para mandar o seu artigo logo, mesmo logo, que esteja pronto. Queria escrever-lhe mais, mas escrevo-lhe da Central, e com uma pena de tinta permanente... Quer isto dizer que a tinta me falta a cada palavra que escrevo, porque nunca me afiz a semelhantes viadutos de tinta. Escreva, sim? e, uma pergunta: Quando vem dar uma fugida cá?
Saudades dos amigos, e um abraço do
José Maria dos Reis Pereira


in João Gaspar, José Régio e a História do Movimento da «presença» , Porto, 1977


Nota - Tem essencialmente interesse documental, porque trata do início da presença, uma das mais importantes, talvez a mais importante e interessante revista literária portuguesa do século XX, cujo n.º 1 sairia a 10 de Março seguinte. 

O irmão de Régio era, obviamente, o pintor Júlio [Maria dos Reis Pereira], que foi também o grande poeta Saul Dias.