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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Pará, 6 de Dezembro de 1655: o Padre António Vieira a D. João IV


 Senhor:

     Com esta remeto a Vossa Majestade a relação do que se tem obrado na execução da lei de Vossa Majestade sobre a liberdade dos índios. Muitos ficam sentenciados ao cativeiro por prevalecer o número dos votos mais que o peso das razões. Vossa Majestade, sendo servido, as poderá mandar pesar em balanças mais fiéis que as deste Estado, onde tudo nadou sempre em sangue dos pobres índios, e ainda folgam de se afogar nele os que desejam tirar perigo aos demais. Contudo se puseram em liberdade muitos, cuja justiça por notória se escapou das unhas aos julgadores. Tudo o que neste particular, e nos demais se tem obrado a favor das cristandades, e em obediência da lei e regimento de Vossa Majestade, se deve ao governador André Vidal, que em recebendo as ordens de Vossa Majestade, se embarcou logo para esta capitania do Pará, a dar à execução muitas coisas, que sem a sua presença se não podiam conseguir. Se o braço eclesiástico ajudara ao secular, tudo se pusera facilmente em ordem e justiça; mas, como as cabeças das Religiões têm opiniões contrárias às que Vossa Majestade manda praticar, estão as consciências como dantes, e o que não nasce destas raízes dura só enquanto dura o temor. Já dizem que virá outro governador, e então tudo será como dantes era; e eu em parte assim o temo, porque todos os que cá costumaram vir até agora traziam os olhos só no interesse, e todos os interesses desta terra consistem só no sangue e suor dos índios.
     De André Vidal direi a Vossa Majestade o que me não atrevi atègora, por me não apressar; e, porque tenho conhecido tantos homens, sei que há mister muito tempo para se conhecer um homem. Tem Vossa Majestade mui poucos no seu reino que sejam como André Vidal; eu o conhecia pouco mais que de vista e fama: é tanto para tudo o demais, como para soldado: muito cristão, muito executivo, muito amigo da justiça e da razão, muito zeloso do serviço de Vossa Majestade, e observador das suas reais ordens, e sobretudo muito desinteressado, e que entende mui bem todas as matérias, posto que não fale em verso, que é falta que lhe achava certo ministro grande da corte de Vossa Majestade. Pelo que tem ajudado a estas cristandades lhe tenho obrigação; mas pelo que toca ao serviço de Vossa majestade (de que nem ainda cá me posso esquecer) digo a Vossa Majestade que está André Vidal perdido no Maranhão, e que não estivera a Índia perdida se Vossa Majestade lha entregara. Digo isto porque o digo neste papel, que não há-de passar das mãos de Vossa Majestade, e assim o espero do conhecimento que Vossa Majestade tem da verdade e desinteresse com que sempre falei a Vossa Majestade, e do real e católico zelo, com que Vossa Majestade deseja que em todos os reinos de Vossa Majestade se faça justiça e se adiante a fé. A muito alta e muito poderosa pessoa de Vossa Majestade guarde Deus como a Cristandade e os vassalos de Vossa Majestade havemos mister. Pará, 6 de Dezembro de 1655.
António Vieira




Cartas
(edição de Mário Gonçalves Viana)


Nota -  Missiva que faz jus à grandeza do Padre António Vieira, como homem, sacerdote, retórico e diplomata. Apóstolo dos índios, assim lhe chamam, não logrou, infelizmente, a mesma diligência relativamente aos escravos africanos. Referência a André Vidal de Negreiros (1606-1680), figura-chave do Brasil colonial.
Nota (10/XII/2017) A ler, no último JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, #1231,, 6-XII-2017, um pertinente artigo sobre a questão,  de José Eduardo Franco, Pedro Calafate e Ricardo Ventura, «Negros, ameríndios e a questão esclavagista em Vieira».

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Roma, 1 de Janeiro de 1675: o Padre António Vieira a Duarte Ribeiro de Macedo (1.I.1675)



Senhor meu:

     Escrevo estas poucas regras no primeiro dia do ano, o qual me acha na cama, aonde me tem reduzido o achaque do estômago, de que no passado dei conta a V. S.ª. E, depois de desejar a V. S.ª muitos anos e felicíssimos, temo muito que este seja o último da minha vida, principalmente se, na consulta que amanhã se há-de fazer dos médicos, eles não acabarem de se persuadir que o clima de Roma é a causa principal e ordinária deste achaque, e não me receitarem a mudança de ares, não passando aos vizinhos por alguns dias, como querem os amigos, mas caminhando aos pátrios. Pode ser, como eu espero, que seja providência divina, para que assim cessem os impedimentos, e se componham os que me detêm aqui, como me querem antes vivo em Portugal que morto em Roma. Se bem não deixo de considerar quão pouco para desejar nem viver está hoje aquela terra, e quantos desgostos e perigos pode temer nela quem incriminado está, posto que falsamente, no delito que lá se começou e aqui se prossegue, com terríveis ameaças e profecias fulminadas contra todos os cúmplices dele. O nosso Residente é [tão] prudente que, sem embargo das repetidas ordens que tem de não falar por uma nem por outra parte, as interpreta de tal modo que no público e no particular se mostra em tudo parcial dos dois enviados. Mas que muito, se em Lisboa foi chamado à Inquisição um dos nossos maiores ministros, para ali se achar em um conselho, e do que nele se praticou e resolveu foi avisar a Rainha Nossa Senhora que, se S. A. não acudisse a impedir algumas ordens, ou já notificadas ou expedidas de Roma em ordem à suspensão de actos de Fé e semelhantes execuções enquanto se não decidisse o pleito, soubesse que estava em risco de haver um motim. Deste aviso e deste conselho, e de entrar nele um Conselheiro de Estado, e de ter confiança para se entremeter em tudo isto sem licença nem autoridade, e de dizer o que disse e ameaçar o que ameaçou, sem se puxar por este fio e desenovelar uma tal matéria, julgue V. S.ª o que lhe parecer, que eu julgo sòmente o que a V. S.ª parece, e quanto para temer é o mesmo silêncio e quietação, de que se dá por tão seguro o ministro que a V. S.ª escreve.
     De novo só posso dizer o que também me acrescenta não pouco este temor, e com o mesmo me o escrevem de Lisboa concordemente três pessoas, que eu reputo pelas mais zelosas ao serviço de S. A. e bem do Reino, sem mais interesse que o mesmo bem: e é que, poucos dias antes do último correio, partindo aos 13 de Novembro, se tinha ouvido em Lisboa um Jonas pregando: Adhuc quadraginta dies et Ninive subvertetur. Este homem, que pode ser seja conhecido de V. S.ª, é um capitão, grande poeta vulgar, chamado antigamente António da Fonseca, o qual se meteu frade de S. Francisco haverá oito ou dez anos, e hoje se chama Frei António das Chagas. Haverá dois ou três anos começou a pregar apostòlicamente, exortando à penitência, mas com cerimónias não usadas dos Apóstolos, como mostrar do púlpito uma caveira, tocar uma campainha, tirar muitas vezes um Cristo, dar-se bofetadas, e outras demonstrações semelhantes, com as quais, e com a opinião de santo, leva após si toda Lisboa.
     Prega principalmente na igreja do Hospital, concorrem fidalgos e senhoras em grande número, e uma vez lançou do púlpito entre elas um crucifixo, a que se seguiram grandes clamores; e com isto se entende que o dito pregador tem na mão os corações de todos, e os poderá mover a quanto quiser, temendo-se que, se seguir a opinião ou apreensão vulgar, e se meter no ponto da Fé, poderá ocasionar algum alvoroço semelhante ao do tempo de El-Rei D. Manuel, não longe do mesmo lugar onde prega. E verdadeiramente que a consideração do lugar, a circunstância do tempo, a disposição dos ouvintes; e ser o Jonas soldado, poeta e frade; e não acudirem a estas extravagâncias os que costumam fazê-lo com menores fundamentos; prenúncios podem ser de alguma tempestade, que, se não se levantou nos primeiros dias, pode ser que se vá armando para o fim dos quarenta, que tantos são os sermões que tem prometido, e vai sucessivamente continuando todos os dias.
     Algum ou alguns dos mesmos que me fazem este aviso propuseram o seu temor a quem devera remediar, mas sem efeitos. Assim costumam ser os das fatalidades, e a minha melancolia é mais pronta a querer em desgraças que em felicidades.

     Deus guarde a V. S.ª como desejo.

     Roma, 1.º de Janeiro de 1675 -- Capelão e criado de V. S.ª

António Vieira



In Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal (2.ª ed., 1951), recolhida na edição Sá da Costa da Cartas (1951), por António Sérgio e Hernâni Cidade.


Nota - Dirigida a Duarte Ribeiro de Macedo, então enviado em França, excelente sobre o ambiente persecutório e o poder da Inquisição, cuja chaga purulenta ainda hoje se escarva e se escarra na tristíssima sociedade portuguesa. 

O retrato do fascinante Frei António das Chagas é esplêndido, bem como a arguta noção de Vieira dos perigos do prègador iluminado e alucinado -- qual pastor tele-evangelista --, o receio pelo que, às mãos da turba poderiam sofrer os cristãos-novos; evocando o massacre dos judeus ocorrido em Lisboa no reinado de D. Manuel I, cujo memorial há uma década foi erigido nesse Largo de São Domingos de nefanda memória, e que hoje, ironia da História, é local de cruzamento étnico das mais desvairadas religiões e dos que não têm religião nenhuma.