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sexta-feira, 5 de abril de 2019

6 de Março de 1927: Raul Proença a Fidelino de Figueiredo

Vamos enviar para os jornais portugueses a resposta às suas miseráveis calúnias. Se a publicarem, intimamo-lo a que nos responda! Se a não publicarem, devo adverti-lo de que não há maior ilusão do que pensar que sempre se negará em Portugal aos acusados o direito de defesa. Um dia há-de chegar em que a minha pena possa infligir-lhe nos principais jornais do país o castigo que merece. Serei implacável. Terá o direito de se defender por sua vez. Isso não impedirá que fique desfeito em lama.
O sr. (tão insignificante, mas ao mesmo tempo tão inconsciente) não faz a menor ideia das responsabilidades trágicas que acaba de assumir. Não é só pela calúnia que terá a responder. Será também pela destruição sistemática da nossa obra, já iniciada pela liquidação da tipografia. O seu ódio pessoal levou-o a tratar como inimigo a Biblioteca. Pagá-lo-á! Um dia saberá como a minha pena e as minhas mãos são duras quando têm a zurzir miseráveis da sua laia.
6 Março 1927
Raul Proença

Nota -- in Raul Proença, O Caso da Biblioteca,  Lisboa, Biblioteca Nacional, 1988; edição de Daniel
Pires e José Carlos Gonzalez. Um caso triste de contenda entre dois dos mais brilhantes intelectuais portugueses da sua geração, na sequência do saneamento de Proença (1884-1941), Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e outros da direcção da Biblioteca Nacional, assumida de novo por Fidelino (1888-1967), lugar que ocupara no tempo do sidonismo. Nunca chegariam a cruzar-se: quando Proença regressa a Portugal -- depois da participação no 3/7 de Fevereiro de 1927 e consequente expatriação -- será a vez de Fidelino estar exilado, por décadas. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Santa Eufémia, Córdova, 16 de Novembro de 1870: Oliveira Martins a António Enes


S.ta Eufémia, 16 de Novembro.


Meu caro Enes


     Há já bastante tempo que recebi a tua boa mas desalentada carta. Compreendo o que sentes, porque o senti já, enquanto não tomei a resolução heróica de viver só para comer, e sentir alguma coisa semelhante, á vita della bestia do Maquiavel. O trabalhar e elevar o espírito no convívio humano e existir dentro da Sociedade Culta (?) é, quer-me parecer, impossível. Nós formamos hoje, em Portugal, principalmente, aquilo que a ex-França chamou os declassés. Deita-te ao bispo ou ao Fontes ou ao Ávila, e verás como és homem! Mas tu não podes e dou-te os parabéns por isso. Que vives e reages, vejo eu também, porque além do teu opúsculo, que peço desculpa de não te ter agradecido ainda, tenho seguido a tua polémica com o Testa no J. do C.  -- Dum e doutro dos teus trabalhos, que além da atenção que em si merecem, me mereciam a mim, aquela que se deve a um amigo, te direi o que penso.
     Parece-me que o teu ataque ao Testa, que bem escrito, erudito, sério e elevado, era fraco num ponto essencial, fundamental, direi mesmo, a filosofia do direito. Em virtude de quê entraram os italianos em Roma? Em virtude do direito revolucionário, liberal, etc. E o Testa nesta parte responde-te bem. Meu amigo é necessário dizer as cousas pelos seus nomes e romper com certas banalidades, que não têm razão de ser. Tu não querias impugnar a grande banalidade -- a força não dá direito: uma conquista é um facto, não é um direito. Eu tratando essa questão, diria abertamente: a força é direito a conquista é um direito. É só neste terreno que quanto a mim se pode (e deve) defender a entrada dos italianos em Roma. Quanto ao mais, pouco se me dá que a oligarquia burguesa do governo italiano substitua a oligarquia clerical do governo romano. Duvido que os romanos ganhem muito com a mudança. O plebiscito tem para mim valor igual, ao da recepção de Garibaldi em Nápoles. Já se queixam os napolitanos.
     Lembra-te de que o orçamento da despesa do governo italiano, é o quíntuplo da soma do de todos os estados anexados, antes de 59. Não, os governos constitucionais e liberais, não querem, nem a justiça, nem a liberdade, nem são o caminho para ela. Sobre a ruína de instituições caducas, assentam uma casta que vive dum erro económico da sociedade contemporânea -- a burguesia capitalista. Quanto mais sociedades constituto-liberais se formem mais sangrenta será a luta pela revolução e pela justiça. Quanto *a reformação do non possumus papal, seriamente crês nela? Não digas isso, homem; pois não vês que no momento em que Roma dissesse o possumus, tinha morrido e vergonhosamente? Assim ao menos cai no seu posto. Sobre o teu folheto prusso-francês, que li e reli, te direi que me parece muito mais bem pensado e o abraço convictamente. A França era com efeito o país donde nos devia vir a tocsin regeneradora; Mas a França morreu. Poderá substituí-la a Alemanha? Não tenho ideia feita sobre isso. Não conheço e do pouco que sei, tremo muito da Alemanha. Não falo de Bismark e Comp.ª, porque a esses creio eu que foi a guerra um passo agigantado para a ruína. No momento em que a Alemanha se encontrar constituída, há-de varrê-los de casa para fora, e se o não fizer cairá mais depressa, do que caiu a França.
     Desculpa-me tu meu caro Enes esta maçada; o deserto obriga a meditar, e estas noites longas de inverno a conversar com os bons amigos como tu, por esta forma, já que por outra não pode ser. se não fazes nada aí, vem até cá. Asseguro-te que por um mês hás-de distrair-te. A indústria em si tem uma verdadeira poesia, nunca a senti como agora, a serra, os caracteres primitivos do povo e o sabor arabesco das povoações, valem a pena de serem vistos. Economicamente se faz a jornada.
     Minha mulher te pede para te ser recomendada, e eu que, lembrando-me a todos os que de mim se lembrarem, aceites o cordial aperto de mão


                                                                                Do teu amigo


                                                                                                               J. P. Oliveira Martins


Correspondência de J. P. Oliveira Martins, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1926.

(edição: Francisco d'Assis Oliveira Martins)

Nota - A propósito do trabalho de António Enes, A Guerra e a Democracia. Considerações sobre a Situação Política da Europa (1870), Martins expõe o seu conceito antiliberal, que virá a tomar a forma de cesarismo, comenta a entrada das tropas de Vítor Manuel II em Roma, liquidando os Estados Pontifícios e culminando a reunificação de Itália, bem como a delicada Guerra Franco-Prussiana -- cujos efeitos ainda hoje são sentidos.

domingo, 5 de novembro de 2017

1972: Ferreira de Castro ao director do «Notícias de Chaves»


Senhor Director:

     Chamaram a minha atenção para um artigo publicado no «Notícias de Chaves», onde Aquilino Ribeiro e eu somos acusados de termos agredido, em romances nossos, o concelho de Montalegre.
     Creio que se trata de dois fortes equívocos. Que eu saiba, o grande Aquilino nunca escreveu livro algum sobre aquela região e, no meu romance «Terra Fria», pratiquei um acto de solidariedade humana com o povo de Barroso, então completamente abandonado ao seu destino. Uma solidariedade que me exigiu alguns sacrifícios, diga-se sobriamente de passagem.
     E assim me parece que só quem não souber ler ou não souber compreender a intencionalidade do que lê poderá tomar como agressão uma obra de profundo amor pelo nosso semelhante.
     Como este não é o caso do articulista*, penso que as suas palavras são consequência duma leitura apressada. De todas as maneiras, considero-as injustas e se ele tiver ainda alguma dúvida, que leia o prefácio da edição especial da «Terra Fria», publicada em 1966.
     Julgo, aliás, e outras pessoas julgam também, inclusive categorizados transmontanos,, que o meu romance, sobretudo por haver sido publicado com ilustrações em rodapés de «O Século», antes de sair em livros, contribuiu para algum progresso que se tenha dado desde essa época, numa terra de tão belos aspectos e num povo boníssimo, que bem mereciam melhor sorte e que os detentores do poder pareciam ignorar inteiramente.
     Com antecipados agradecimentos pela publicação desta carta, envio-lhe, sr. director, as minhas saudações corsiais.

Ferreira de Castro 





in Barroso da Fonte, Diálogo com Ferreira de Castro -- A Propósito do Romance Terra Fria, Braga, Editora Pax, 1973.

Nota - Parece que causou controvérsia a questão do adultério da protagonista de Terra Fria (1934) na então longínqua Padornelos. Ao contrário do que pode parecer, a paciência de Castro foi infinita, em face dos pundonores (provincianos) desgravados.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

1924: António Sérgio a Castelo Branco Chaves


[1924]

Meu caro Amigo:

Pensando no caso, acho que é melhor que seja o meu Amigo quem escreva ao Sardinha. Peço-lhe que enuncie as seguintes verdades:
Primeira. Não quero, não quererei nunca atacar o Sardinha. Pretendo defender o o prestígio da secção crítica da «Lusitânia», que o Sardinha atacou, mandando para a revista um artigo que é um desmentido, de lés a lés, do meu artigo na «Lusitânia» sobre o Múrias. O Sardinha, se fosse discreto, publicava aquilo na «Nação Portuguesa».
(Aqui para nós, e só para nós: o facto é tanto mais estranhável quanto fui eu que concebi e fundei a «Lusitânia». O Afonso e o Sardinha entrariam para o elenco redactorial da revista porque o Afonso mo pediu. Para ver quanto o acto do Sardinha foi pouco generoso, suponha a hipótese de eu sair vencido na polémica. Eis um homem que entra a pedido numa revista criada por mim, para, uma vez lá, minar o prestígio literário de quem gentilmente o recebeu.) Em resumo: o atacante (sem nenhuma necessidade) é o Sardinha. Eu defendo-me, e vou fazê-lo no tom mais amável e amistoso.
Segunda. Não manifestei o desejo, por mim, que o artigo não fosse publicado. Não me obriguem ao ridículo de fazer notar ao Sardinha que não tenho medo da crítica dele. Pelo contrário. Logo disse que, pessoalmente, estimava a publicação do artigo. Para a unidade e prestígio da «Lusitânia», porém, e para evitar os cancans do respeitável público, achei melhor que o artigo do Sardinha fosse publicado na «Nação», e a minha resposta na «Seara». Evitar luta dentro da «Lusitânia». A «Lusitânia» deveria ser reservada para a expressão daquilo que nos é comum; a «Nação» e a «Seara» para a amistosa discussão das divergências. Este meu modo de ver obteve até hoje o assentimento de todas as pessoas que o conhecem, excepto... não sei se realmente há alguma excepção, porque ninguém até hoje, por palavras, mo contestou claramente, depois de eu o explicar com minúcia.
Ora aí está. Não sou inimigo de ninguém, não quero atacar ninguém. Defendo e tenho defendido Ideias que julgo verdadeiras e úteis a Portugal. Posso achar más certas ideias do Sardinha, ou do amigo do Sardinha, o Sr. Múrias, mas sendo e continuando a ser amigo do Sardinha e dos seus amigos. Tenho mostrado bem que não me importo de desagradar e cabe por isso dizer que tenho para com o Sardinha a melhor boa vontade deste mundo, sem que possam duvidar da minha franqueza. Não cuido precisar do Sardinha para coisa nenhuma, não cuido que a inimizade do Sardinha me possa prejudicar, pessoal e literariamente: sou portanto absolutamente sincero quando digo que quero ser amigo do Sardinha, que não tenho o menor desejo de o atacar ou de lhe causar o mais pequenino prejuízo no seu prestígio de historiador. E isto não é virtude; é o reconhecimento intelectual de que há espaço para toda a gente neste mundo, que enfim de contas nos encontramos todos com todos, e não só com os nossos contemporâneos, e que tanta razão tenho para temer que me faça sombra o Sardinha como que me faça sombra o Camões. De mais, não me considero homem de letras: sou um homem que, tendo meia dúzia de convicções, usa da letra redonda como o melhor meio de as divulgar entre os seus compatriotas. Ao próprio Fidelino, que me pretendeu insultar, não me seria, eu só desejo que se emende, e que passe a escrever com mais acerto. Ser inferior a um génio chamado Sardinha, ou chamado Fidelino, não me seria mais doloroso do que ser inferior a um génio chamado Espinosa ou chamado Platão. E por ser verdade o escrevi.
Et nunc et semper

A. Sérgio



Cartas de António Sérgio a Castelo Branco Chaves: 192541955
(edição de Luísa Ducla Soares)


Nota - Os homens da Seara Nova  e do Integralismo Lusitano, convergiram por vezes, em
publicações comuns, apesar da distância política. Esta carta é disso exemplo. Castelo Branco Chaves começou por ser integralista e monárquico, tendo participado na Revolta de Monsanto, em 1919. O primeiro livro, ensaio sobre Fialho de Almeida (1923) fora prefaciado por António Sardinha, que morrerá em 1925. Será um dos mais próximos colaboradores de António Sérgio.


terça-feira, 5 de julho de 2016

Lisboa, 26 de Abril de 1929: Ferreira de Castro a Jaime Franco



Meu ilustre camarada.


Muito e muito obrigado pela sua carta. É a primeira voz amiga que o Brasil me fez ouvir, depois da publicação dos meus «Emigrantes». Confesso que me magoou o que certos jornais daí escreveram sobre o meu livro, que pode não ter relevo literário, mas que é honesto e realizado à margem de sentimentos mesquinhos ou estreitos. E magooei-me, sobretudo, porque me atacaram sem ler o livro, excepto a «Notícia», do Rio, que, para encontrar matéria condenável... teve de falsificar os textos! Os outros periódicos, guiando-se pela «Notícia», tomaram a nuvem por Juno e vá de me acusarem sem terem visto o corpo de delito. A um deles -- «A Gazeta», de São Paulo -- ainda escrevi uma carta pondo as coisas nos seu lugar. Não sei se a publicou, se não. O que sei é que, tempos depois, mostraram-me um exemplar desse periódico, onde reincidia na acusação. Vi que estava de má fé e renunciei a escrever aos outros jornais que me atacavam. Por isso mesmo, a sua carta fraternal sensibilizou-me imenso. Se eu não fosse internacionalista, se eu tivesse preconceitos de raças, se eu não amasse o Brasil como a melhor recordação da minha adolescência, não me importunariam as calúnias que me atribuíram. Mas assim, não. Desgosta-me, sobretudo, a ideia de que as pessoas que aí me conheceram com sentimentos de fraternidade universal, possam supor que, dum instante para o outro, me tornei jacobino, patriota, adepto de todos os gestos comuns... Eu bato-me pela Humanidade, quer seja branca, preta ou amarela, europeia ou americana, asiática ou africana. Eu sou pelos humildes contra os poderosos, pelos explorados contra os exploradores, quer estes sejam portugueses ou brasileiros, espanhóis ou chineses. Para mim há uma questão social, não há uma questão de raças. Veja o meu ilustre camarada como o «Zé do Aido» que foi para os Estados Unidos, põe este país em pé de igualdade com o Brasil, onde esteve o «Manuel da Bouça». Porque descrevo o Brasil? Porque é o país americano que melhor conheço. E não revelo eu as manhas dos portugueses que traficam com a emigração? O que é o Nunes, agente de passagens e passaportes? Contudo, essas más interpretações deixam sempre alguma coisa desagradável no nosso espírito. Agora mesmo hesito em escrever sobre a selva amazonenese, onde estive cerca de quatro anos, e que tinha planeado há muito. Era a epopeia desse heróico e ingénuo cearense, a quem se deve o desbravamento da selva virgem, que, todavia, é lá explorado e escravizado por uns senhores que vivem nababescamente do trabalho desse sertanejo humilde. Mas encontro-me indeciso em realizar a obra, não vão supor os brasileiros que eu quero ferir-lhes o patriotismo. E mesmo que venha a escrever esse romance, já não estarei à vontade. E é lamentável que isto suceda, devido às más interpretações que alguns jornais do Brasil deram ao meu livro, sem o lerem! Por isso repito, você, que é uma excepção, comoveu-me enormemente. A última vez que estive em Santos, foi em 1919 e é natural, portanto, que me tenha esquecido de alguns pormenores. E se a paisagem do porto de Santos «desiludiu» os imigrantes, é porque a da Guanabara é mais imponente e teatral. Mas lá estão o meu entusiasmo e os meus fortes e quentes adjectivos para os panoramas que se vislumbram da Serra e do Mar, a compensar o seu justo bairrismo. E creia que tenho saudades daí, sobretudo das praias José Menino e Guarujá...


(a) Ferreira de Castro -- Lisboa, abril, 26, de 1929.


In Jaime Franco, Gente Lusa, Instituto D. Escolástica Rosa, Santos, 1945.


Nota - Carta muito significativa de Ferreira de Castro, na sequência dos ataques que os sectores nativistas brasileiros haviam desferido contra Emigrantes, romance publicado no ano anterior. Ataques, apesar de tudo, de menor dimensão do que os que sofreria A Selva (1930), por parte do "verdeamarelismo cretino", assim classificados por José Lins do Rego, um muito jovem escritor que, com Jorge Amado, Jorge de Lima e outros viriam à liça, em alguns casos de forma muito contundente, verberar o nacionalismo pateta dos plumitivos de serviço.