Abril de 1939
Prezado camarada:
Desculpe-me esta demora. Não foi a leitura da suas peças que me tomou todo este tempo: Li-as logo que as recebi. Mas queria escrever-lhe devagar e longamente. Afinal... para quê? Além de que adio sempre demasiado as cartas que me proponho escrever como quem escreve um ensaio, -- o que tenho de principal a dizer-lhe é simples; e pode ser dito ao correr pena, conforme sair: Gostei muito das suas peças... e julgo não me ter enganado gostando. O que nas suas críticas me chamara a atenção não fora tanto a justeza ou a não justeza dos juízos (se alguns seus juízos me pareciam justíssimos, outros, tal o sobre o João Falco, pareciam-me injustos) como, sobretudo, um tom de quem diz as coisas sabendo o que diz, «com um saber de experiência feito». O João Pedro de Andrade afigurou-se-me um daqueles homens -- raros em Portugal -- que têm um conhecimento íntimo, profundo, pelo menos de certos aspectos da vida, e nesse conhecimento se estribam quando escrevem. Esses, são interessantes mesmo quando errem ou se enganem: As suas palavras podem não ter a sonoridade própria a certos talentos brilhantes e ocos... mas claro que é preferível, nesta coisa das letras, o som cheio, surdo, duma pancada num muro denso. Julgo eu que se não pode ser grande escritor sendo pequeno homem, e que é preciso ter coisas em si para poder interessar aos outros. Ora através dos seus artigos e críticas, o João Pedro de Andrade parecera-me um desses homens que têm o direito de escrever por alguma coisa terem, de facto, a dizer aos seus semelhantes. Por isso lhe pedi colaboração para a presença. Não tive grande mérito na minha descoberta, pois já outros tinham descobrido o mesmo. E por isso esperei e li com grande curiosidade as suas peças. Ora no meu entender, as suas peças confirmam dum modo muito superior ao das suas críticas isso que eu pressentira: O João Pedro de Andrade tem coisas a dizer; e isto que parece um mínimo de exigência, exigir dum escritor que tenha coisas a dizer, -- não o é; pelo menos, cá na minha linguagem. Além disso o João Pedro de Andrade é sem dúvida uma vocação de dramaturgo. O seu diálogo logo me surpreendeu (desculpe, eu devia escolher outro verbo...) pela rara qualidade de não ser vulgar nem empolado; isto é: de só ter a estilização necessária a todo o diálogo de teatro, e adequada ao assunto, personagens, meio, etc. Mas não achei menos notável a simplicidade, digamos nudez, depuração, com que a acção caminha, desprezando todo o desnecessário, todo o supérfluo, -- ou a vida que anima os personagens, tão diferentes dos retóricos bonecos que por aí nos apresentam em cena. Perante estas qualidades importantíssimas, nem tenho a mínima vontade de entrar numa análise crítica, miúda e restritiva: Naquela vida própria que adquirem personagens de ficção (em Continuação da Comédia) poder-se-á, talvez, descobrir um eco de Pirandello. E adivinho, pois o não chego a constatar, nem sei quê do Ibsen em certas falas ou no ambiente de Uma só vez na vida. Porém Ibsen é daqueles grandes Mestres com quem todos podem aprender sem sacrificar a sua originalidade própria (isto mesmo é o que caracteriza os mestres autênticos...) e qualquer sugestão que Pirandello lhe tenha dado não diminui a originalidade da sua peça num acto. A verdade nua e crua, muito simplesmente dita, é esta: Eu fiquei entusiasmado com as suas peças. E o que me admira, posto em Portugal não sejam estas coisas muito para admirar, é que o João Pedro de Andrade tenha escrito estas peças, e outras, e seja desconhecido como autor dramático. Não terá o meu prezado camarada alguma culpa nisso? É preciso lutar, teimar, impor-se. Eu quereria poder fazer alguma coisa para o poder ajudar nessa empresa. Mas que posso eu senão escrever? Se consente em publicar na presença A Continuação da Comédia, (e digo esta não porque Uma só vez na vida lhe não seja ainda superior, que o é, mas porque a sua extensão dificulta mais o caso) terei nisso verdadeiro prazer. Tínhamos combinado começar a publicar desde o próximo número uma peça inédita de Alfredo Cortês -- Bâton. Mas não recebemos, até hoje, notícia duma resolução definitiva do autor. A sua peça apareceria já no próximo número, no caso de não vir a dele, que tem primazia por uma simples questão de prioridade de tempo. Uma revista tem as suas exigências de equilíbrio no género da colaboração publicada; e por isso poderia este primeiro número da nova série da presença parecer conter demasiado teatro, no caso de saírem a público as duas peças. Já em outro número se poderia melhor admiti-lo. Conhecendo outras peças suas, (que teria muito gosto em conhecer), e obedecendo a uma das intenções da presença, que é estar ao serviço dos verdadeiros talentos que vierem aparecendo, eu escreveria uma nota crítica um pouco desenvolvida sobre um dramaturgo inédito. Fico esperando uma nota sua, e sou o seu camarada e admirador,
José Régio
P.S. -- Por já ser hoje tarde, lhe não devolvo o seu original de Uma só vez na vida. Para lhe devolver o outro, espero a sua resposta.
In João Pedro de Andrade, Intenções e Realizações da presença na Prosa de Ficção
(edição de Julieta Andrade)
Nota: Diálogo entre dois dos maiores críticos do seu tempo, e também dramaturgos: «Não se pode ser grande escritor sendo pequeno homem.» A histórica presença quase no fim.
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