quarta-feira, 3 de abril de 2019

Londres, 20 de Abril de 1911: M. Teixeira-Gomes a João Chagas


Londres, 20 de Abril de 1911

Meu caro Amigo:

Respondo à sua carta de 15, a primeira que daí recebo dando-me informações de utilidade.
Como sabe não temos política internacional indicada, de forma que o trabalho dos representantes da República no estrangeiro far-se-á bastante à solta, o que seria um bem, sendo eles sinceros e patriotas, se andassem bem informados. Mas daí não vêm informações oficiais que esclareçam coisa alguma, e os amigos políticos andam demasiado absorvidos com as suas respectivas ocupações para pensarem na necessidade de ter sempre esta Legação -- ou o seu encarregado -- bem a par do que se passa em Portugal. No entanto, agora é que eu constato, toda a nossa vida social, a nossa estabilidade política, a nossa nacionalidade, a conservação das nossas colónias, tudo depende, absolutamente, da Inglaterra, e parece-me que serão precisos dezenas de anos de administração modelar, para nos libertarmos da sua tutela, se é que isso é realizável.
Ora, pense o meu amigo que é aqui que reside a família real portuguesa, conservando relações excelentes com a corte inglesa e tratando por via do Soveral com os Lordes que possuem e dispõem incondicionalmente de quase todos os jornais, e avaliará como a minha missão é fácil. Acresce que não temos vintém para as mínimas despesas essenciais e para as mais simples gratificações ou presentes deve o ministro  buscar recursos da sua própria receita. Você diz-me que cuide na publicidade dos meus actos em Portugal. Do essencial recebe o nosso ministro relatos, pelos cortes dos jornais que se lhe mandam. Veja se algum jornal, dos que lhe pertencem, já se referiu a eles. Para bem tratar desse assunto seria forçoso tomar secretários particulares e redobrar de trabalho: ora, já não é possível dar mais. desde que aqui estou não distraí das minhas obrigações meia dúzia de horas e parece-me que está tudo por fazer. Devo dizer-lhe que estou satisfeito com os meus secretários da Legação. O Câmara Manuel é um solteirão habituado à repartição e que dá muito boa conta do seu recado e o Ferreira de Almeida talvez um pouco socancra, trabalha, no entanto, com muita consciência e posso agora afirmar-lhe que ambos se me têm mostrado colaboradores ideais. Tenho também um rapaz inglês -- que eu pago da minha algibeira -- inteligente e zelosíssimo, que presta muitos bons serviços, e todos nós trabalhamos na medida das nossas forças. É para notar que por lei esta Legação devia ter dois secretários -- além dos adidos -- e somente tem um secretário e um adido que exerce as funções de segundo secretário. E é quando a república procura tomar força que semelhante Legação está tão bem provida de funcionários!
Agora temos, palpitante, a questão de Lourenço Marques. É um caso seriíssimo.
A imprensa, evidentemente assoprada pelos nossos vizinhos africanos, quer fazer na Inglaterra uma atmosfera favorável a qualquer golpe de mão, como seria um raid promovido pela judiaria da União Sul-Africana, e o mais curioso é que o Governo inglês instado pelo cônsul de Lourenço Marques, e intimado pela imprensa inglesa a mandar navios de guerra para aquele porto, ainda não conseguiu pôr nenhum dos couraçados que compõem a esquadra do Cabo em termos de se fazer ao mar. Agora anuncia-se como certa a saída de um cruzador amanhã, do Cabo para Lourenço Marques.
Para fazer ideia do que se passa naquela nossa colónia valeram-me umas conferências que aí tive com o Baltasar Cabral e o Freire de Andrade, e foi assim que, ao anúncio espalhafatoso da revolução em Moçambique, anarquia em Lourenço Marques, proclamação de uma nova república sul-africana, etc., eu pude afirmar nos jornais que tudo se reduzia a uma exaltação, sem consequências, dos elementos republicanos que exigiam do Governo da Metrópole a demissão de alguns empregados que o Governo Provisório conservara. Dois dias estive sem receber daí esclarecimentos, que pedi logo à publicação das primeira notícias, e por fim veio uma coisa a dizer o que eu já anunciara aqui. Mas o caso, repito, é seriíssimo. Olhem bem, para ele.
Já pedi o folheto do Columbano, e pelo menos duas bandeiras: uma para a Legação, e outra para dar à Sociedade Shakespeariana, que arvora ainda a antiga, e a quem é costume as nações presentearem com as suas bandeiras. Espero que atenderão sem demora o meu pedido, tanto mais que o fiz particularmente, e com muita instância, ao próprio Bernardino. -- Pelo que tenho descoberto foi o bispo do Funchal quem se encarregou de arranjar -- de acordo com os Jesuítas, os emissários para a propaganda anti-republicana na Europa, mandando um para aqui e os outros para Paris, Roma e Berlim. O daqui chama-se Mendes -- mas não sei que profissão tem. Sei porém que é muito inteligente, que está informado de quanto se passa em Portugal, e vai receber ordens a Richemond com grande frequência.
Logo que saiba alguma coisa do que está em Paris, informá-lo-ei. O célebre padre Cabral trabalha actualmente na Holanda. Ainda lhe alcançaram no Museu Britânico uma colocação bem remunerada, mas ele recusou-a, para ficar livre. Parece-me que já temos conversado bastante.
Veja você se me pode dar, antes de sair daí, algumas informações mais, sobretudo sobre o que se espera dos resultados das eleições: se há probabilidades de levar à Câmara algumas criaturas de jeito. -- Anuncie a sua chegada a Paris por telegrama.
Do coração

Nota -- Correspondência I -- Cartas para Políticos e Diplomatas, Lisboa, Portugália Editora, 1960. Edição de Castelo Branco Chaves. Manuel Teixeira-Gomes, além de ser um dos grandes escritores portugueses do século XX, foi igualmente um extraordinário diplomata, o rosto da República em Londres, o mais importante posto diplomático do país, então. Dos desafios, a carta é eloquentemente elucidativa. Foi também Presidente da República (1923-25), o único a resignar, enojado com a política de porcaria, com grande vantagem também para a nossa literatura, pois mais de metade da sua obra é publicada após a renúncia ao cargo.  Chagas, embaixador em paris, viria a sobraçar daí a uns meses a pasta do Negócios Estrangeiros.




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