domingo, 17 de dezembro de 2017

Bruxelas, 22 de Agosto de 1933: Alberto de Oliveira aos organizadores do «In Memoriam» de Delfim Guimarães



    Ex.mos Srs.


     Com muito prazer me associo à justa homenagem, que VV. tomaram a iniciativa de promover, à memória do nosso ilustre confrade Delfim Guimarães.
     Apesar de sermos conterrâneos, só tive ocasião de o conhecer pessoalmente há poucos meses; e realizou-se esse encontro em circunstâncias que não esqueci e que bem assinalam os raros dotes de coração e de carácter que, não menos que os da inteligência, caracterizavam a figura de Delfim Guimarães. Por isso as vou narrar aqui ràpidamente.
     Em Outubro do ano passado foram convidados alguns amigos e admiradores de António Feijó a reunir-se no gabinete do Dr. Júlio Dantas, na Biblioteca Nacional, para deliberarem sobre a realização do monumento que se projectava erigir ao insigne poeta minhoto na sua tão amada vila natal de Ponte do Lima. Estava eu então em Lisboa e, correspondendo ao apelo que me foi dirigido, compareci à reunião. Quase ao mesmo tempo que eu chegava também, pelo braço do nosso comum amigo Dr. Araujo Lima, um homem de fisionomia atraente, mas parecendo muito doente e exausto de forças, que logo depois soube ser Delfim Guimarães. Vinha arquejante de ter subido a longa escadaria do velho convento fransciscano e mal podia falar quando entabolámos conversa.
     Referiu-se ao seu estado de saúde com a tristeza de quem lhe conhecia a gravidade: e com efeito, de vê-lo e ouvi-lo. fiquei comovidamente certo de que ele já não tinha senão um fio de vida. Meses depois êsse fio partia-se sem nenhuma surpreza minha.
     Mas o que aumentou nesse momento a minha comoção foi ver Delfim Guimarães, que me parecia agonizante, tomar parte tão efectiva e dedicada naquela reunião dos amigos de um poeta morto e valorizar essa adesão não só com a sua presença num lugar de acesso tão penoso e até perigoso para a sua saúde, como pelo oferecimento, que se apressou a fazer com calor, dos seus serviços e préstimos, para que o projecto em discussão não tardasse a converter-se em realidade.
     Esse homem tão vizinho da morte, e sabendo-o, que se esquecia completamente de si para se votar tão afanosa e desinteressadamente ao culto de outro poeta, que já só existia na memória dos que o amaram e admiravam, não era certamente do número daqueles para quem se fez o moto: «Les morts vont vite». Mas, e ainda melhor, também não era daquelas numerosas almas a quem o egoísmo, se as não dominou sempre, acaba por vencer, de tal modo o instinto de conservação é preponderante e quase legítimo no homem. Aquele poeta sofria de grave doença do coração: mas o seu coração, quase sem corda, estava moralmente intacto e vigoroso e continuava a bater com a mesma pontualidade e carinho pelos seus amigos vivos ou mortos.
     VV. acharão talvez, como eu, que este singelo facto que lhes ofereço retrata com justeza as feições morais de Delfim Guimarães. Se assim é, queiram incluí-lo no seu In Memoriam e aceitem os mais atenciosos cumprimentos do

                                                De VV. confrade muito de dicado e obrigado

                                                                    
 Alberto d'Oliveira
Bruxelas, 22 de Agosto de 1933.


In Memoriam de Delfim Guimarães -- 1872-1933, organizado por Galino Marques, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1934.

Nota - Bela carta evocativa de Delfim Guimarães, recém-falecido. Pelo tom, parece que Oliveira fala de alguém muito mais velho, quando apenas um ano os separava. Missiva de homenagem, ao velho poeta e editor, e de exaltação do dever de memória.

2 comentários:

  1. Felizmente tenho o parque Delfim Guimarães, em
    frente da minha casa. Basta espreitar pela janela
    e ver uma bela mancha verde todos os dias.Abençoada
    homenagem, que tanto valorizou esta minha terra.

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