quinta-feira, 13 de junho de 2019

Sintra, 2 de Agosto de 1983: Francisco Costa a João Bigotte Chorão

Sintra, 2 de Agosto de 1983.

Meu caro João Bigotte Chorão,

Recebi o seu ensaio sobre "a literatura portuguesa nos próximos 25 anos", e li-o com uma surpresa correspondente à perplexidade que o esfíngico tema lhe causou, quando lhe foi proposto. Sinto nessas páginas um localismo pessimista, impróprio de si, que me fez lembrar os anos 40/50, quando, a propósito dos meus romances, os críticos episódicos (permanente, havia apenas um e era o menos desdenhoso) repisavam o tema do mísero epigonismo dos autores contemporâneos. Nessa altura, abstive-me de replicar: medice, cura te ipsum, aos que também eram autores, mas aludia algures, se bem me lembro, ao "acendrado patriotismo" daqueles que só ficariam satisfeitos se os portugueses fossem pioneiros em tudo: nos caminhos literários como outrora nos caminhos marítimos.
Claro que havia excepções isoladas, entre as quais se distinguiam o António Quadros, o Luís Trigueiros, o Amândio César; mas os críticos mais persistentes, adversários da autocracia reinante, vingavam-se indirectamente nos autores não subversivos, pisando-os como degraus inferiores, a fim de eles próprios parecerem mais altos, aos olhos do público, sempre crédulo. Hoje suponho que se faz o contrário: aumenta-se artificialmente a estatura dos autores afectos à ideologia dominante; e quanto aos desafectos, nega-se-lhes, pura e simplesmente, a existência literária, presente ou passada.

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Mas voltemos ao que é sério. Sei muito bem, querido amigo, que a Província é que alimenta os nossos tradicionais centros de cultura, em Coimbra e Lisboa. Eu próprio, na esteira do "pobre homem de Póvoa do Varzim", me intitulo "pobre homem da serra de Sintra"; mas o facto de esta ser "uma quinta com porta para o Chiado", como dizia o Eça, é segundo parece o que me torna um citadino incapaz de trabalhar a bem da língua portuguesa. Sim: a julgarmos por estas suas páginas, só Tomás de Figueiredo e João de Araújo Correia foram, em rigor, notáveis obreiros do nosso idioma na primeira metade deste século, pois só eles são a tal ponto camilianos que há trechos deles -- transcritos no seu CAMILO, A OBRA E O HOMEM -- que parecem mesmo escritos pelo autor de A BRASILEIRA DE PRAZINS; além desses dois cultores do vernáculo, o seu texto refere apenas, de relance, alguns grandes nomes que pareceria mal omitir. Quanto a este seu amigo, a omissão compreende-se, pois sempre considerei a língua, com toda a sua riqueza conceptual e metafórica, simples matéria instrumental daquilo que mais interessa: a forma, sensível e inteligível, de obra literária.
É evidente que se as raízes da nossa cultura se encontrassem, quanto ao século XIX, somente no fecundíssimo escritor de S. Miguel de Ceide (que por si só constitui uma secção da Biblioteca Municipal de Sintra), os dois obreiros, agora elogiados, seriam de facto os mais notáveis. Nesse caso, porém, a geração de 1870, antinacional nos temas e atitudes, teria sido também perniciosa ao depurar a nossa língua literária, banindo os arcaísmos e modismos obsoletos, rebuscados e divulgados pelo autor de MEMÓRIAS DO CÁRCERE.
Ao queixar-se de que Eça de Queirós e os seus amigos "implicavam" com ele, sempre que isso vinha a "talho de foice", Camilo provocou a célebre carta que o autor de O PRIMO BASÍLIO escreveu ao autor de O ESQUELETO, texto que, bem relido e meditado, muito útil seria a quem defende o nosso idioma somente no plano da filologia e da linguística. se essa carta, naquela altura, não chegou ao destinatário, foi talvez porque este brandiria logo o formidável cacete minhoto contra o frágil florete citadino do seu jovem rival, e a polémica alastraria imediatamente em rixa, na feira das letras: à paulada e sem proveito para ninguém. Felizmente, o português depurado foi o que vingou, no final do século XIX, e hoje o "camilismo idiomático (não o escritor Camilo, evidentemente) é raridade museográfica para colecionadores e eruditos apenas.

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Alargando o tema do epigonismo literário, duvido muito de que esse conceito se aplique somente a autores portugueses; melhor: creio que o epigonismo é inevitável no mundo das letras e das artes, estando longe de ser um defeito. Já no começo deste século o anglo-americano T. S. Eliot o defendia ao advertir que o talento individual não pode nem deve renegar a tradição, seja nacional seja internacional. Desde esse ensaio, que ficou célebre, acusar de epigonismo os inúmeros continuadores de Jane Austen e Balzac, pioneiros do "roman anti-romanesque", tão apropriadamente definido por Taine, na sua HISTOIRE DE LA LITTÉRATURE ANGLAISEAo que parece, só a crítica portuguesa descobriu neste país um epigonismo congénito, muito embora o próprio Camilo, ao dizer-se um dia humilde discípulo de Balzac, se atribuísse desse modo uma qualidade e não um defeito. Não sei, aliás, se o grande escritor sabia ver-se como era, no plano da novelística; e só estranho que em Portugal, a propósito dele e de Eça de Queirós, ainda não se tenha estudado a fundo o que distingue narradores e ficcionistas. O tema, abordado por Paulo Dantas, no Brasil, a propósito de José Lins do Rego, mereceria bem ser aprofundado a nível universitário, pois -- insisto -- não é na prática da língua, matéria instrumental da obra literária, mas sim no tratamento da forma, constituída pelas personagens e suas circunstâncias, que as duas famílias de escritores se distinguem, cabendo a designação de ficcionistas aos que se empenham sobretudo em criar pessoas fictícias (são, afinal, "poetas fingidores", diria aqui o Fernando Pessoa) e a designação de narradores, aos que preferem alargar-se na descrição das circunstâncias e ambientes sociais. Em nossos dias, não será isso, precisamente, o que distingue um Paço d'Arcos de um Ferreira de Castro, e -- vamos lá -- um Francisco Costa de uma Agustina Bessa Luís?

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Muito mais justo do que os críticos dos anos 40/50, o João Bigotte Chorão observa que a literatura portuguesa só é epigonal na medida em que, "não assumindo a nossa identidade, copia figurinos estranhos ao nosso corpo": os galicismos e modismos realistas de Eça de Queirós são o exemplo mais ilustre desse defeito. Mas, amigo, nós portugueses, para além do corpo nacional, temos alma universal; e é por isso que o Eça, inferior ao Camilo quanto à extensão e portuguesismo do vocabulário, vale mais do quele na criação de personagens, fazendo o estudo psicológico delas, não em colóquio com o leitor, mas por meio da acção e das falas: no estilo próprio dos falantes e não nos estilo próprio do escritor, como fazia o autor de AMOR DE PERDIÇÃO, cujos heróis e heroínas falavam todos em português camiliano. Concordo plenamente consigo, quando nos diz achar monótono "o inventário notarial do passado", e ver "na vocação necrófila uma das taras da nossa cultura", mas precisamente porque ama a cultura "como qualquer coisa de vivo e vital", não o sinto à vontade entre os futurologistas (ou apenas futuristas), mais ou menos afectado por aquela "baixa preocupação de actualidade" que Fidelino de Figueiredo já denunciava em 1925, na mesma linha do tão citado ensaio de T. S. Eliot, que é de 1917 -- ano que foi, em Portugal, o da insurreição literária do ORPHEU e da contra-revolução política de Sidónio Pais, precursor do salazarismo subsequente. E também não terá sido por acaso que ambos esses movimentos de 1917 se inseriram, logo de início, na acção do meu primeiro tríptico de romances.
Quando o P. Manuel Antunes, a propósito do meu caso e de outros contemporâneos, tentou "elevar-se a cima do momento e do local", apreciando os autores recentes em perspectiva intemporal, os críticos de então -- os tais que se empoleiravam sobre os autores, para não parecerem anões -- troçaram a tal ponto dessa tentativa, que até ele passou a ferir a tecla do epigonismo nacional, acentuando o queirozismo ou camilismo dos romancistas actuais... falhos de actualidade internacional. Abriu então uma tímida excepção para o "brotar fontal"  de Agustina Bessa Luís, enquanto João Gaspar Simões, aludindo aos "aracnídeos romances" da autora minhota e desconhecendo totalmente a obra do lisboeta Paço d'Arcos, tratava o sintrense Francisco Costa, apesar de católico, em perspectiva universal e em termos tão generosos que o inolvidável P. João Mendes espontaneamente se arrependeu (em carta, não em público) da parcimónia da sua apreciação a meu respeito. A verdade tem de se dizer: foi o agnóstico, não o católico, quem se atreveu a apreciar os meus romances no plano das grandes obras do género, para justificar, como ele próprio observou, os seus reparos antimoralísticos... nem sempre justos. Na Brotéria, confinaram-me aos limites da aldeia portuguesa, talvez por eu não lhes ter dado um romance integralmente católico, segundo o modelo mauriaciano, definido e até preceituado pelo autor de MONTE PARNASO MONTE CARMELO.


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E afinal vou dando alguns trechos de memórias (quase sempre egocêntrico e egotistas) nas cartas que escrevo neste meu final de vida literária. Junto lhe envio cópia daquela que dirigi ao Gilberto Moura, pois ao escrevê-la pensai constantemente em si e nos seus generosos escritos a meu respeito. Há quarenta anos, sempre que a perspectiva literária se alargou para além do nosso burgo, foi ainda o João Gaspar Simões quem me defendeu por várias vezes, indignando-se, numa delas, contra a miopia dos meus correligionários, que não sabiam ver esta "glórias das letras católicas portuguesas". Triste glória a minha: a de um autor que nunca se decidiu a promover "son personnage", como me dizia o meu querido Paço d'Arcos. Vi-o pela última vez nesta casa, quando ele, já muito doente, persistiu em aceitar aquela reunião de amigos, com que se festejou, depois da missa, meio século de matrimónio feliz. Também ele, depois do António Júdice, muito estimava a "colaboradora invisível dos meus romances": a grande senhora sem a qual eu não seria quem sou. Agora, viúvo, encontrei-me tristemente com a viúva dele, noutra merenda (assim se dizia em Sintra no tempo do Marialva), oferecida pelo Domingos Oliveira Martins ao Embaixador do Brasil, que brevemente será transferido para Washington.
Coincidência curiosa: dias antes, o Dr. Dário Castro Alves encontrara-se com o Amândio César, e tais coisas este lhe disse a respeito dos meus romances e outros escritos, que o cultíssimo diplomata brasileiro andava desde então à minha procura pelo telefone, sem conseguir ligação. O Oliveira Martins nos ligou inesperadamente, sem saber que bom serviço me prestava ao convidar-me.
E pronto! Esta sua carta vai tão extensa como a do Gilberto Moura: a bem do correio, cujas tarifas subiram verticalmente.

Abraça-o, como sempre, o seu amigo muito grato

Francisco Costa

PS. Leio em LÍNGUA PORTUGUESA (Junho, 1983), a propósito do recente CONGRESSO SOBRE A SITUAÇÃO ACTUAL DA LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO, estas palavras do director da revista: "Não sei de mais alto serviço prestado à língua portuguesa".
Então os autores que escreveram em português, desde o século de Camões ao de Fernando Pessoa, não prestaram serviços relevante à língua pátria?

nota - João Bigotte Chorão, Diálogo com Francisco Costa, Sintra, Santa Casa da Misericórdia [1994]. Conferência. Uma carta que é um documento notável sobre as tensões ideológicas que a literatura portuguesa conheceu no século XX, com as suas vítimas e os seus triunfadores.




sexta-feira, 24 de maio de 2019

Lisboa, 23 de Outubro de 1915: Fernando Pessoa a John Lane

Lisboa, 23rd. October 1915

Sir,

I am sending you with this letter copies of sixteen poems of mine, fifteen of which are representative of the work contained in a book of English poems which I find myself to have written.
Putting aside for the moment the opinion I myself may form from these poems, the fact remains that I cannont, of course, have any idea, not of the objective, but of the (so to speak) temporal, value of these poems. Hence I cannot rightly measure what probabilities attach to a publication of them.
You will be the best judge of this, and, seeing that you have extensively published modern English poetry, I send you these poems as a sort of inquiry whether you would be disposed to publish a book the substance of which is precisely on the lines which these poems represent.
The book would cover about 200 pages, taking as typical page that of, say, your edition of Ernest Dowson's poems. It would include no long compositions -- none longer, I believe, than the Fiat Lux sent you. I have indeed longer poems written in English, but these could not be printed in a country there is na active public morality; so I do not think of mentioning them in this respect -- that is to say, in respect of a possibility of their being published in England.
The circumstances attending first-hand criticism have in all times been so uncertain, that I hope you will no be offended if I ask you to read the poems more than once, or so to have them read. Their chieg merit, if they have one, is precisely in that they do no enter into the stream of any current poetical movement -- except, perhaps, the Portuguese «sensationist» movement, of which I am the leader --; so that, the more cultured and educated the critic of them is,  the more likely he is to find a pitfall for is judgement, for the less improbable is it that his mind is already herdened in a definite mould.»
These poems contain, here and there, certain eccentricities and peculiarities of expression; do not atribute these to the circumstance of my being a foreigner, nor indeed consider me a foreigner in your judgement of these poems. I pratice the same thing, to a far higher degree, in Portuguese. If, however, you prefer to consider these modes or strangeness as the wild cats of the imagination, I hope you will let me lay claim to sowing them consciously.
The fact is that these are forms of expression necessarily created by na extreme pantheistic attitude, which, as it breaks the limits of definite thought, so must violate the rules of logical meaning. The poems I am sending (and the others I have referred to) are, however, the mildest in this sense; I spare you all special reference to the poems which properly represente what I cal the «sensationist attitude», save that, to give you some idea of the thing meant, I add to the fifteen poems a sensationist poem in English. This, as stated, does not belong to the book.
Please adress your reply to: Fernando Pessoa -- Director de «Orpheu» -- Rua do Ouro, 196 -- Lisboa.
Awaiting with much interest your opinion, and thanking you for it in advance, I am, Sir,
Yours faithfuly,

Mr. John Lane,
Publisher,
London.

nota - Fernando Pessoa, Correspondência Inédita, edição de Manuela Parreira da Silva (Lisboa, Livros Horizonte, 1996). A carta a Lane (1854-1925) insere-se no propósito de Pessoa em levar o seu «sensacionismo» a cruzar a fronteira (ver). ).

 

sexta-feira, 10 de maio de 2019

30 de Julho de 1867: Camilo Castelo Branco a Eduardo Costa Santos

Meu amigo:

D. Ana e eu lhe agradecemos mui cordialmente a oferta de um laborioso e utilíssimo trabalho. Na 2.ª edição do «Cavar em Ruínas», se se fizer em minha vida, farei menção da nota do meu amigo.
A maior parte dos livros que me propõe em troca, a tenho nas Memórias da Academia. Outros, afora aqueles, já os possuo, e alguns não interessam ao género dos meus estudos. Relativamente aos abatimentos, que o meu amigo faz aos livros que por aí tenho, são eles tamanhos que não os aceitaria eu. É certo que autorizei o Eduardo a abater, mas com abatimento também da percentagem que lhe designei. Sem isso não terão eles tão desgraçado fim. Prefiro recolhê-los porque merecem mais alguma estima. Do seu muito amigo

30 de Julho 67.

Camilo Castelo Branco






nota - publicado por António Cabral, Homens e Episódios Inolvidáveis (1947), que identifica o destinatário, um dos editores de Camilo, embora com reservas. É possível que a carta tenha que ver com um dos leilões da sua livraria.

domingo, 5 de maio de 2019

Caminha, 1 de Janeiro de 1923: Luciano Pereira da Silva a Joaquim de Carvalho

Meu prezado Amigo:

Recebi a sua carta que lhe agradeço. A respeito do original do Hümmerich, não se lhe pode exigir que o mande dactilografado, pelo menos este primeiro trabalho que ele tem pronto, e está copiado pela senhora dele, com certeza com m.to boa letra para ir para a imprensa. Ele escreve sempre em letra m.to legível, e com certeza o original vem assim. Eu lerei ao compositor a primeira, ou as primeiras páginas, e como eu assistirei à composição, e reverei as primeiras provas, isso caminhará rapidamente.
Para pedir ao Dr. Hümmerich que me mande o original, espero as suas informações sobre os caracteres sânscritos.
Pergunta-me se recebi as Cartas do R. Sanches, que eu m.to lhe agradeço. Mas mandou-mas para Caminha, ou para a minha casa de Coimbra, Palácios Confusos? Se mandou para aqui não recebi. Se mandou para os Palácios Confusos, lá me entregarão o livro, q.do eu regressar a Coimbra, onde tenciono chegar no dia 6.
Os trabalhos do Hümmerich são m.to importantes e para nós m.to interessantes, por serem relativos a coisas portuguesas.
Estive agora com um professor do Liceu de Braga, natural deste concelho, amador e negociador de coisas antigas, e possuidor de livros e pergaminhos. Falou-me de uns manuscritos, que apanhou em Braga, e eu propus-lhe que lhos mandasse (sendo eu o portador, q.do puder ser), para serem publicados, se tiverem valor, sendo-lhe depois restituídos a ele. Não foi fora disso. Eu disse-lhe isto, pensando na sua projectada publicação. Quem sabe se ele terá coisa de valor, inédita, é claro! Será bom ver.
E não lhe tiro mais tempo. Disponha do que é, com especial estima,

Seu amigo certo e m.to grato

Caminha, 1.I.23

Luciano Pereira da Silva

P. S. Agora mesmo recebo da mão do carteiro, as Cartas. M.to e m.to obrigado, pelo seu presente de Ano Novo. tive de rasgar o envelope da carta, para introduzir este grato suplemento.

nota - Correspondência de Luciano Pereira da Silva para Joaquim de Carvalho, introdução e notas por José Barbosa, separata, do Bol. Bibl. Univ. Coimbra, vol. 39 - 1984, Coimbra, 1985. Matemático e historiador da náutica dos Descobrimentos, Luciano Pereira da Silva (1864-1926) faz a ponte entre Franz Hümmerich, autor, entre outros, dum estudo sobre o roteiro da viagem de Vasco da Gama, para a sua publicação na Revista da Universidade de Coimbra, dirigida por Joaquim de Carvalho. A referência bibliográfica a Ribeiro Sanches: Cartas Sobre a Educação da Mocidade (1760), publicadas no ano anterior pela Imprensa da Universidade, com edição de Maximiano de Lemos.




domingo, 28 de abril de 2019

Coimbra, 2 de Março de 1903: João de Barros a Teixeira de Queirós

Illmo. e Exmo. Senhor

Permita V. Excia. que eu, agradecendo-lhe muito a sua carta, procure justificar a ideia dos meus versos.
O que V. Excia. chama ironias volterianas são apenas argumentos -- os argumentos de que eu, poeticamente, podia e sabia usar e que não têm a mais leve intenção irónica. Não encontrei outro modo de provar a humanidade  da Virgem Maria, isto é, de destruir o fundamento evangélico do símbolo, que é, na verdade, mt.º belo, mas que me parece não representar já, não resumir uma aspiração dos homens; e que, por isso mesmo, é falso. Penso que a Vida, cuja concepção é cada vez mais larga e menos mística, requer novos símbolos. E que ajudar a destruir os antigos é ajudar o progresso, ou antes, é ser levado por ele.
Efectivamente a tendência para significar no vivo palpável o que existe no nosso vivo impalpável, como V. Ex.ª diz, ou para a materialização dos símbolos, é inseparável e natural do espírito humano; mas é preciso que desapareçam as antigas imagens para dar lugar às novas, às que merecem a adoração dos homens de hoje, às que representem os novos símbolos -- a não se acreditar num futuro em que elas se tronem inúteis pela maior perfeição moral da humanidade.
Não falo das desastrosas consequências práticas que tem dado a crença na Virgindade de Maria. Foram elas, no entanto, que inspiraram os meus versos.
Enquanto à poesia deste símbolo, o meu espírito -- por incompleto, certamente -- não a reconhece como actual, como tema que ainda possa dar vida a composições poéticas. O Soneto de Antero é muito bom; mas parece-me mais dirigido à Mãe dos Pecadores, à Senhora dos Aflitos, que propriamente à Virgem.
Perdoe V. Excia. a minha franqueza. É possível, é natural até, que me engane; mas disse a opinião a que cheguei pelo que tenho lido e pensado; opinião que, se não tem valor nenhum ou é errada, teve no entanto o merecimento de me valer a sua boa carta.
Subscrevo-me, com todo o respeito.

1903-III-II
Coimbra

De V. Excia.
Admirador e Amigo Mtº Reconhecido
João de Barros


nota - resposta a esta carta. Publicada por Manuela de AzevedoCartas a João de Barros, Lisboa, Livros do Brasil, s.d. Segundo a editora, o poema em apreço terá sido publicado em Caminho do Amor (1904).

terça-feira, 16 de abril de 2019

Lisboa, 5 de Fevereiro de 1949: Marcelo Caetano a José Magalhães Godinho

Lisboa, 5 de Fevereiro de 1949

Exm.º Sr. Dr. José de Magalhães Godinho:

Acuso a recepção da carta de V. Ex.ª, datada de ontem, à qual tenho a responder o seguinte:
1.º -- A entrevista a que V. Ex.ª se refere não foi redigida por mim. Na conversa que tive com o representante da ANI pediu-me este que desse um panorama das correntes da oposição; ao tentáculo, quando me referi à cisão do Partido Socialista, pronunciei efectivamente o seu nome e de outras pessoas que, segundo me constava por informações diversas, representavam a tendência da SPIO. Não é minha responsabilidade directa, portanto, a investidura de V. Ex.ª na chefia desse sector socialista ou a sua designação como pessoa mais representativa dele.
2.º -- Em qualquer hipótese nunca me passou pela cabeça que o dizer-se, de mais a mais neste período, que A ou B pertence a uma facção possa ser considerado uma denúncia, tratando-se ainda por cima de quem nunca escondeu as suas, aliás respeitáveis, convicções oposicionistas.
3.º -- Agradeço os esclarecimentos que me dá sobre a sua posição ideológica e de bom grado rectificarei a informação constante da minha entrevista acerca da sua simpatia acerca da sua simpatia pela colaboração com os comunistas.
À semelhança de V. Ex.ª, reservo-me o direito de fazer desta carta o uso que entender conveniente e sou,

de V. Ex.ª, com a devida consideração.




nota - resposta a esta carta. In José Magalhães Godinho, Pela Liberdade, Lisboa, Publicações Alfa, 1990

quinta-feira, 11 de abril de 2019

29 de Maio de 1930: H. Lopes de Mendonça a Ferreira de Castro

Meu Ex.mo e prezado Camarada

Li com imenso interesse o romance A Selva, com que teve a gentileza de me brindar. Confirmaram-se e melhoraram ainda as belas impressões que me tinha deixado Os [sic] Emigrantes. Procuro fugir ao tom pedantesco para francamente, sem ares de pedagogo que seriam descabidos, lhe manifestar o meu sentimento de viva admiração. Sem sombra de lisonja, afirmo a V. Ex.ª que através da sua visão de português vejo melhor o interior do Brasil do que na retina dos escritores brasileiros. Podia atribuir-se isto à afinidade que existe entre as visões de dois europeus. Mas, seja como for, é necessária uma grande energia no descritivo e uma intensidade grande de colorido, para que os quadros se me apresentem tão cheios de vida cinematográfica. Creia V. Ex.ª que é com sincera efusão que o cumprimento e o felicito.
Faltaria a um dever de consciência para com um artista do seu alto valor, se muito de relance não indicasse o principal senão que se me deparou no seu livro. A acção romântica pareceu-me desconexa um pouco, e até às vezes obscura em consequência de certas falhas de narrativa. Este senão é contudo sobejamente resgatado pelas eminentes qualidades que tive o grande prazer de apontar.
Há meses -- não sei se lhe constou -- saí com o peso dos meus 70 e tantos ao escritório da rua do Carmo para ter o prazer, ainda inédito, de apertar a mão que tão belos livros escreve. Senti não o ter conseguido. E agora maior pesar tenho de ainda de não se me deparar ensejo de manifestar verbalmente a V. Ex.ª a minha admiração e a minha simpatia literária, e de desenvolver algumas considerações que a leitura dos seus livros me sugere.
Não o podendo fazer, sirvo-me deste meio para reiterar as minhas felicitações e os meus agradecimentos, subscrevendo-me, com a maior consideração e estima.

De V. Ex.ª
Adm.or e cam.ª obg.mo

H. Lopes de Mendonça

S/C
29-V-30

nota -- Publicado por Ricardo António Alves, Cartas Inéditas a Ferreira de Castro, Sintra, Vária Escrita #1, Câmara municipal, 1994. Lopes de Mendonça (1856-1931), autor dos versos de A Portuguesa, além de erudito historiógrafo da náutica dos Descobrimentos, era um exigentíssimo estilista. A sanção de uma figura deste peso já histórico -- concorrera com Eça de Queirós a um mesmo concurso promovido pela Real Academia das Ciências, tendo o seu Duque de Viseu logrado alcançar o discutido favor do júri em detrimento de A Relíquia --, constituiria para o jovem literato que se fez a si próprio uma distinção de modo algum desprezável. Vinha já longe o tempo das ousadias alardeadas pelo Mas...(1921).


sexta-feira, 5 de abril de 2019

6 de Março de 1927: Raul Proença a Fidelino de Figueiredo

Vamos enviar para os jornais portugueses a resposta às suas miseráveis calúnias. Se a publicarem, intimamo-lo a que nos responda! Se a não publicarem, devo adverti-lo de que não há maior ilusão do que pensar que sempre se negará em Portugal aos acusados o direito de defesa. Um dia há-de chegar em que a minha pena possa infligir-lhe nos principais jornais do país o castigo que merece. Serei implacável. Terá o direito de se defender por sua vez. Isso não impedirá que fique desfeito em lama.
O sr. (tão insignificante, mas ao mesmo tempo tão inconsciente) não faz a menor ideia das responsabilidades trágicas que acaba de assumir. Não é só pela calúnia que terá a responder. Será também pela destruição sistemática da nossa obra, já iniciada pela liquidação da tipografia. O seu ódio pessoal levou-o a tratar como inimigo a Biblioteca. Pagá-lo-á! Um dia saberá como a minha pena e as minhas mãos são duras quando têm a zurzir miseráveis da sua laia.
6 Março 1927
Raul Proença

Nota -- in Raul Proença, O Caso da Biblioteca,  Lisboa, Biblioteca Nacional, 1988; edição de Daniel
Pires e José Carlos Gonzalez. Um caso triste de contenda entre dois dos mais brilhantes intelectuais portugueses da sua geração, na sequência do saneamento de Proença (1884-1941), Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e outros da direcção da Biblioteca Nacional, assumida de novo por Fidelino (1888-1967), lugar que ocupara no tempo do sidonismo. Nunca chegariam a cruzar-se: quando Proença regressa a Portugal -- depois da participação no 3/7 de Fevereiro de 1927 e consequente expatriação -- será a vez de Fidelino estar exilado, por décadas. 

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Londres, 20 de Abril de 1911: M. Teixeira-Gomes a João Chagas


Londres, 20 de Abril de 1911

Meu caro Amigo:

Respondo à sua carta de 15, a primeira que daí recebo dando-me informações de utilidade.
Como sabe não temos política internacional indicada, de forma que o trabalho dos representantes da República no estrangeiro far-se-á bastante à solta, o que seria um bem, sendo eles sinceros e patriotas, se andassem bem informados. Mas daí não vêm informações oficiais que esclareçam coisa alguma, e os amigos políticos andam demasiado absorvidos com as suas respectivas ocupações para pensarem na necessidade de ter sempre esta Legação -- ou o seu encarregado -- bem a par do que se passa em Portugal. No entanto, agora é que eu constato, toda a nossa vida social, a nossa estabilidade política, a nossa nacionalidade, a conservação das nossas colónias, tudo depende, absolutamente, da Inglaterra, e parece-me que serão precisos dezenas de anos de administração modelar, para nos libertarmos da sua tutela, se é que isso é realizável.
Ora, pense o meu amigo que é aqui que reside a família real portuguesa, conservando relações excelentes com a corte inglesa e tratando por via do Soveral com os Lordes que possuem e dispõem incondicionalmente de quase todos os jornais, e avaliará como a minha missão é fácil. Acresce que não temos vintém para as mínimas despesas essenciais e para as mais simples gratificações ou presentes deve o ministro  buscar recursos da sua própria receita. Você diz-me que cuide na publicidade dos meus actos em Portugal. Do essencial recebe o nosso ministro relatos, pelos cortes dos jornais que se lhe mandam. Veja se algum jornal, dos que lhe pertencem, já se referiu a eles. Para bem tratar desse assunto seria forçoso tomar secretários particulares e redobrar de trabalho: ora, já não é possível dar mais. desde que aqui estou não distraí das minhas obrigações meia dúzia de horas e parece-me que está tudo por fazer. Devo dizer-lhe que estou satisfeito com os meus secretários da Legação. O Câmara Manuel é um solteirão habituado à repartição e que dá muito boa conta do seu recado e o Ferreira de Almeida talvez um pouco socancra, trabalha, no entanto, com muita consciência e posso agora afirmar-lhe que ambos se me têm mostrado colaboradores ideais. Tenho também um rapaz inglês -- que eu pago da minha algibeira -- inteligente e zelosíssimo, que presta muitos bons serviços, e todos nós trabalhamos na medida das nossas forças. É para notar que por lei esta Legação devia ter dois secretários -- além dos adidos -- e somente tem um secretário e um adido que exerce as funções de segundo secretário. E é quando a república procura tomar força que semelhante Legação está tão bem provida de funcionários!
Agora temos, palpitante, a questão de Lourenço Marques. É um caso seriíssimo.
A imprensa, evidentemente assoprada pelos nossos vizinhos africanos, quer fazer na Inglaterra uma atmosfera favorável a qualquer golpe de mão, como seria um raid promovido pela judiaria da União Sul-Africana, e o mais curioso é que o Governo inglês instado pelo cônsul de Lourenço Marques, e intimado pela imprensa inglesa a mandar navios de guerra para aquele porto, ainda não conseguiu pôr nenhum dos couraçados que compõem a esquadra do Cabo em termos de se fazer ao mar. Agora anuncia-se como certa a saída de um cruzador amanhã, do Cabo para Lourenço Marques.
Para fazer ideia do que se passa naquela nossa colónia valeram-me umas conferências que aí tive com o Baltasar Cabral e o Freire de Andrade, e foi assim que, ao anúncio espalhafatoso da revolução em Moçambique, anarquia em Lourenço Marques, proclamação de uma nova república sul-africana, etc., eu pude afirmar nos jornais que tudo se reduzia a uma exaltação, sem consequências, dos elementos republicanos que exigiam do Governo da Metrópole a demissão de alguns empregados que o Governo Provisório conservara. Dois dias estive sem receber daí esclarecimentos, que pedi logo à publicação das primeira notícias, e por fim veio uma coisa a dizer o que eu já anunciara aqui. Mas o caso, repito, é seriíssimo. Olhem bem, para ele.
Já pedi o folheto do Columbano, e pelo menos duas bandeiras: uma para a Legação, e outra para dar à Sociedade Shakespeariana, que arvora ainda a antiga, e a quem é costume as nações presentearem com as suas bandeiras. Espero que atenderão sem demora o meu pedido, tanto mais que o fiz particularmente, e com muita instância, ao próprio Bernardino. -- Pelo que tenho descoberto foi o bispo do Funchal quem se encarregou de arranjar -- de acordo com os Jesuítas, os emissários para a propaganda anti-republicana na Europa, mandando um para aqui e os outros para Paris, Roma e Berlim. O daqui chama-se Mendes -- mas não sei que profissão tem. Sei porém que é muito inteligente, que está informado de quanto se passa em Portugal, e vai receber ordens a Richemond com grande frequência.
Logo que saiba alguma coisa do que está em Paris, informá-lo-ei. O célebre padre Cabral trabalha actualmente na Holanda. Ainda lhe alcançaram no Museu Britânico uma colocação bem remunerada, mas ele recusou-a, para ficar livre. Parece-me que já temos conversado bastante.
Veja você se me pode dar, antes de sair daí, algumas informações mais, sobretudo sobre o que se espera dos resultados das eleições: se há probabilidades de levar à Câmara algumas criaturas de jeito. -- Anuncie a sua chegada a Paris por telegrama.
Do coração

Nota -- Correspondência I -- Cartas para Políticos e Diplomatas, Lisboa, Portugália Editora, 1960. Edição de Castelo Branco Chaves. Manuel Teixeira-Gomes, além de ser um dos grandes escritores portugueses do século XX, foi igualmente um extraordinário diplomata, o rosto da República em Londres, o mais importante posto diplomático do país, então. Dos desafios, a carta é eloquentemente elucidativa. Foi também Presidente da República (1923-25), o único a resignar, enojado com a política de porcaria, com grande vantagem também para a nossa literatura, pois mais de metade da sua obra é publicada após a renúncia ao cargo.  Chagas, embaixador em paris, viria a sobraçar daí a uns meses a pasta do Negócios Estrangeiros.




quarta-feira, 20 de março de 2019

Fontanelas, 6 de Abril de 1966: Vergílio Ferreira a Alberto da Costa e Silva

Fontanelas, 6 de Abril de 1966.

Caríssimo Alberto,
Foi uma grande alegria receber notícias tuas e à falta de uma boa cavaqueira nesta Lisboa que se me vai envelhecendo rapidamente, aqui estou a conversar contigo enquanto a noite não vem de todo. Entretanto espero que tenhas recebido um romance meu -- Alegria Breve -- que te dirá talvez mais de mim do que direi aqui. É uma confissão de cansaço e daí talvez que o estejam aceitando. Porque estamos todos tão cansados. Por mim venho-me habituando de há muito e por isso a fadiga entrou sem fazer mossa. Mas os camaradas da ortodoxia estão aflitos. A famosa História está sempre jovem; eles casaram com ela, mas já estão velhos para lhe darem despacho. Assim se lamentam pelos cantos, enquanto a bela História os vai corneando alegremente.
E assim é que, meu caro Alberto, os meus ensaios os não molestaram muito. Os problemas caseiros correm-lhes mal e quase é um conforto que outros lhos lamentem. Porque isto vai mesmo mal. Na política, mas antes na cultura. Tudo evolui tão rapidamente, que está a gente a chorar uma desgraça e já outra bate à porta. Com as desgraças dos ortodoxos não me importo muito. Mas há as minhas -- há as nossas. Já reflectiste um pouco no que vai pela Arte? O mundo atravessa uma crise da puberdade e, como a natureza nesta quadra da primavera, está pondo a casa em ordem. Mas por ora deita apenas fora os trastes velhos, como a natureza se limpa do que já apodreceu. O pior é que já cá não estarei -- nem talvez tu -- quando tudo for mobilado de novo.»
A Arte é a grande reveladora da vida. E é por isso que ela se despedaça. Mas antes isso que o museu de Grévin. E os bonecos de cera que nos queriam impingir. Tudo isto é fímbria -- dirás tu -- e efeito passageiro desta Semana de Trevas. Não é. Além de que sempre tenho procurado assumir tudo -- mesmo os funerais. Assim os aceito em calma sufocante como os casamentos. Que a sorte me proteja com a mesma calma quando o meu funeral se aproximar.
Pouco contas de ti, da Verinha, dos meninos. Verinha melhor? Vocês fazem muita falta. Sabíeis construir um recanto bem agradável para um refúgio desta estopada que é Lisboa. Tu, por exemplo, deves ter seguido algum curso altamente especializado para fazer amigos. Ou veio-te isso no sangue? Porque os breves anos aqui passados deixaram uma grande saudade em todos os que te conheceram.
E tu, não tens escrito? Deixaste a lira por cá? Ela tinha pelo menos, com efeito, algumas cordas portuguesas.
Um grande abraço da Regina e meu para Verinha e para ti.

Vergílio


Nota - in JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 6 de Janeiro de 2016, número dedicado ao centenário do nascimento de Vergílio Ferreira. Tanto Alegria Breve como o primeiro volume de Espaço do Invisível são de 1965, enquanto que em 1966, ano desta carta, Neste ano, Alberto da Costa e Silva publicará Livro de Linhagem (1966).