terça-feira, 12 de julho de 2016

Cascais, 4 de Dezembro de 1941: Branquinho da Fonseca a Carlos Queirós

Rua Avelar, 1 - Cascais


Meu Caro Carlos Queirós

Retrato em que esteja só com o Régio, não encontrei. É verdade que tenho mais, mas não sei agora aonde. Verei se os encontro. Mas creio que em todas estaremos com outros amigos. Se não tiver muita pressa, em tendo as coisas mais arrumadas lhe direi.
Quanto à biobibliografia: nasci em Mortágua, no dia 4 de Maio de 1905, estudei em Lisboa os primeiros anos do liceu e o resto em Coimbra, onde me formei em direito (4 de Julho de 1930). Fui sócio fundador e director do Triptico e da Presença. Livros, tenho publicados os seguintes: Poemas (1926) -- Posição de Guerra (1928) -- Mar Coalhado (1931) -- Zonas (1932) -- Caminhos Magnéticos (1938) Teatro I (1940).
Está no prelo «O Barão» (novela); na forja «A Porta Férrea» (romance) e na gaveta: o «Vento de Longe» (poemas) e «Arredores do Mundo» (poemas em prosa).
Aqui tem tudo o que quer e mais alguma coisa, pois creio que só lhe interessa o que já foi publicado.

Disponha sempre
do seu amigo e admirador
Branquinho da Fonseca
Cascais
4-XII-41


Fac-símile publicado por David Mourão-Ferreira in Boletim Cultural, n.º1, Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas, Fundação Calouste Gulbenkian.

Nota - Em Janeiro do ano seguinte, Branquinho da Fonseca, um dos fundadores da mítica revista presença e também responsável pelo seu entusiasmante grafismo, tomaria posse do lugar de conservador  do então designado Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães, lugar que desempenhou com grande competência e brilho, ensaiando no concelho de Cascais o sistema das bibliotecas itinerantes, que, na década seguinte, já na Fundação Gulbenkian, espalharia por todo o país, configurando um dos grandes serviços jamais prestados à ilustração dos portugueses.
Desconheço a que fins se destinava esta carta dirigida ao "presencista lisboeta" Carlos Queirós. 
Já agora, uma nota pessoal: nascido em Mortágua, como se lê, Branquinho casar-se-ia com uma senhora de Cascais, por cá tendo ficado a residir, tendo falecido em casa, na Malveira da Serra, em 1974. Está enterrado no Cemitério da Guia, numa campa ao lado da dos meus bisavós.



terça-feira, 5 de julho de 2016

Lisboa, 26 de Abril de 1929: Ferreira de Castro a Jaime Franco



Meu ilustre camarada.


Muito e muito obrigado pela sua carta. É a primeira voz amiga que o Brasil me fez ouvir, depois da publicação dos meus «Emigrantes». Confesso que me magoou o que certos jornais daí escreveram sobre o meu livro, que pode não ter relevo literário, mas que é honesto e realizado à margem de sentimentos mesquinhos ou estreitos. E magooei-me, sobretudo, porque me atacaram sem ler o livro, excepto a «Notícia», do Rio, que, para encontrar matéria condenável... teve de falsificar os textos! Os outros periódicos, guiando-se pela «Notícia», tomaram a nuvem por Juno e vá de me acusarem sem terem visto o corpo de delito. A um deles -- «A Gazeta», de São Paulo -- ainda escrevi uma carta pondo as coisas nos seu lugar. Não sei se a publicou, se não. O que sei é que, tempos depois, mostraram-me um exemplar desse periódico, onde reincidia na acusação. Vi que estava de má fé e renunciei a escrever aos outros jornais que me atacavam. Por isso mesmo, a sua carta fraternal sensibilizou-me imenso. Se eu não fosse internacionalista, se eu tivesse preconceitos de raças, se eu não amasse o Brasil como a melhor recordação da minha adolescência, não me importunariam as calúnias que me atribuíram. Mas assim, não. Desgosta-me, sobretudo, a ideia de que as pessoas que aí me conheceram com sentimentos de fraternidade universal, possam supor que, dum instante para o outro, me tornei jacobino, patriota, adepto de todos os gestos comuns... Eu bato-me pela Humanidade, quer seja branca, preta ou amarela, europeia ou americana, asiática ou africana. Eu sou pelos humildes contra os poderosos, pelos explorados contra os exploradores, quer estes sejam portugueses ou brasileiros, espanhóis ou chineses. Para mim há uma questão social, não há uma questão de raças. Veja o meu ilustre camarada como o «Zé do Aido» que foi para os Estados Unidos, põe este país em pé de igualdade com o Brasil, onde esteve o «Manuel da Bouça». Porque descrevo o Brasil? Porque é o país americano que melhor conheço. E não revelo eu as manhas dos portugueses que traficam com a emigração? O que é o Nunes, agente de passagens e passaportes? Contudo, essas más interpretações deixam sempre alguma coisa desagradável no nosso espírito. Agora mesmo hesito em escrever sobre a selva amazonenese, onde estive cerca de quatro anos, e que tinha planeado há muito. Era a epopeia desse heróico e ingénuo cearense, a quem se deve o desbravamento da selva virgem, que, todavia, é lá explorado e escravizado por uns senhores que vivem nababescamente do trabalho desse sertanejo humilde. Mas encontro-me indeciso em realizar a obra, não vão supor os brasileiros que eu quero ferir-lhes o patriotismo. E mesmo que venha a escrever esse romance, já não estarei à vontade. E é lamentável que isto suceda, devido às más interpretações que alguns jornais do Brasil deram ao meu livro, sem o lerem! Por isso repito, você, que é uma excepção, comoveu-me enormemente. A última vez que estive em Santos, foi em 1919 e é natural, portanto, que me tenha esquecido de alguns pormenores. E se a paisagem do porto de Santos «desiludiu» os imigrantes, é porque a da Guanabara é mais imponente e teatral. Mas lá estão o meu entusiasmo e os meus fortes e quentes adjectivos para os panoramas que se vislumbram da Serra e do Mar, a compensar o seu justo bairrismo. E creia que tenho saudades daí, sobretudo das praias José Menino e Guarujá...


(a) Ferreira de Castro -- Lisboa, abril, 26, de 1929.


In Jaime Franco, Gente Lusa, Instituto D. Escolástica Rosa, Santos, 1945.


Nota - Carta muito significativa de Ferreira de Castro, na sequência dos ataques que os sectores nativistas brasileiros haviam desferido contra Emigrantes, romance publicado no ano anterior. Ataques, apesar de tudo, de menor dimensão do que os que sofreria A Selva (1930), por parte do "verdeamarelismo cretino", assim classificados por José Lins do Rego, um muito jovem escritor que, com Jorge Amado, Jorge de Lima e outros viriam à liça, em alguns casos de forma muito contundente, verberar o nacionalismo pateta dos plumitivos de serviço.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

7 de Janeiro de 1946: Augusto Casimiro a Maia Alcoforado

Meu caro Camarada e Amigo:


Tenho aqui o seu cartão de boas-festas e o seu artigo Dum Natal que já vai longe.
Os seus votos retribuo-os com amigos votos, pela sua saúde, pelas Vitórias que andamos preparando, pelo Natal que já vem perto...
O que significa para a minha alma o seu artigo, por lembrar Nuno Cruz, -- adivinhá-lo-á se lhe disser que o conhecia desde Coimbra, -- foi meu soldado; e desde a Flandres, -- foi meu camarada, -- e heróico. Desde o primeiro momento, -- ia a dizer instante, -- em que o seu nobre espírito, o seu carácter admirável, as suas palavras, precedendo actos belos, se voltaram, fiéis à Pátria, para novas lutas, travadas aqui e no exílio, com igual fidalguia, até à hora de morrer.
O grande Camarada da Flandres, voltou a ser companheiro, e com que exemplar mestria, desde aquele dia (6 ou 7 de Novembro de 1926) -- em que descemos os dois a Lisboa. E com que lealdade e nobreza diante do próprio adversário!
Tive-o muitas vezes, sereno e apostólico foragido, no regaço da minha casa, acarinhado pelos meus.
Conheci-lhe, ainda melhor, o talento e o carácter; -- muitas vezes lhe disse:
-- «Se tudo isto, passando, nos deixar quatro ou cinco homens como você, -- ganharemos a Vitória do Futuro!... [»]
-- Ele pertence ao número daqueles de quem não digo, -- admiro, -- porque os amo.
E o amor é a forma superlativa da admiração.
Num livro que fecharei nas doces vésperas da minha morte Um Homem Lembra-se... -- este Nuno Cruz há-de ficar, espero, como uma das presenças mais vivas e queridas. Não era deste tempo. Aquela rija têmpera, aquela espiritual clareza, aquele amorável feitio...
O seu artigo, para lá do mérito literário com que o meu amigo exprime a sua emoção e solene civismo, -- tem para mim o valor de ser uma prece erguida diante dum altar que venero. Junto a minha à sua prece.
Nesse Natal, longe, longe, onde estava eu? Talvez em Angola, -- ou deportado em Cabo Verde, que por lá vivi de 1931 a 1935.
Felizes os que podem, do coração, puro perante a Pátria, viver a saudade de Natais assim.
Bem haja por tudo! -- pela sua generosa simpatia, pelas sua pródigas lembranças.
Lembre-me às dunas, ao vento, às ondas de Mira, -- e aos que se lembrarem por aí de mim.
De novo um grande Ano, que seja limiar de grandes e generosas tarefas.

Seu
Augusto Casimiro

S/C 7 de Janeiro de 1946

in Maia Alcoforado, Paisagem do Dia Ausente, Porto, Edições AOV, 1947
.


Nota - Uma carta muito sentida de Augusto Casimiro, excelente poeta, homem de A Águia, figura marcante da vida cívica e culrural portuguesa, o segundo director da Seara Nova. Casimiro, combatente na Flandres, como o destinatário desta missiva, Maia Alcoforado, e o homem que a motivou, Nuno Cruz, camarada de armas na Grande Guerra de 14-18, e também naquilo a que ficou conhecido como o 'reviralho' -- a oposição democrática e republicana à Ditadura Militar e ao Estado Novo que ela originou.
As "Vitórias" e o "Natal que já vem perto" são o almejado fim do regime salazarista, que a Oposição perspectivava com a recente vitória dos Aliados na II Guerra Mundial -- fim, que, como sabemos, ainda levaria quase trinta anos.


segunda-feira, 20 de junho de 2016

Montpellier, 25 de Novembro de 1934: Vitorino Nemésio a José Régio

Montpellier
(Collège des Écossais,
Plan des Quatre Seigneurs),

25 de Novb.º 1934.


Meu caro José Régio



Deixe-me exprimir-lhe antes de mais, antes da crítica e de tudo a minha admiração, surpresa, encanto, entusiasmo, fé (e que mais?) pela leitura do seu livro. Vou apenas a págs. 258, mas já fui agarrado, senão rigorosamente desde o princípio, desde bastante no começo. Assim é que estou faltando ao planos que traçara: ler o seu livro apenas em viagem, e até onde chegasse a viagem. E é curioso que isto se tenha dado quando uma das coisas que terei a dizer-lhe é que o seu livro não é romance senão por alguns aspectos. Mas veja já, veja imediatamente como a intrusão da crítica numa impressão sincera e complexa é uma coisa limitante, além de poder ser uma espécie de pedrada... Não; o seu livro é uma fortíssima e extraordinária coisa. Extraordinária para nós portugueses; comum talvez só para uma das duas estreitas dúzias de escritores do mundo. E de novo lhe estraguei o que lhe digo com esta inclinação aldeã de colocar a «música» da terra num plano de «música» de outras terras! Nacionalismo, meu caro José Régio, e vícios de uma fácil «Literatura Comparativa», -- manhas de professor... A verdade é que eu queria passar-lhe para aqui, quase sem meditação (e sobretudo sem premeditação) a porção de coisas que estão a flutuar cá dentro e que me vêm jogadas do seu livro: a poesia extraordinária que nele pulsa; a prosa corrente e ao mesmo tempo rara com que é feito -- rigorosa e ondulante, toda afinada pelo timbre português sem perder nada do tom pessoal de quem a escreve e da cadência a ideias e sensações de toda a parte. Nem quero calcular, organizar esta comunicação do que sinto, e é bem triste afinal que as correntes que nos atravessam tenha a necessidade de fios!
Há páginas em que V. atinge a luminosidade de toda a expressão que conseguiu libertar-se dos seus meios ou da consciência deles para chegar à terrível ou inefável nudez do inexprimido -- e lembro esta página a que já cheguei hoje, 26, dia em que continuo esta carta (p. 323). Aí V. justifica involuntariamente, com naturalidade genial, a escolha do Discours de la Méthode p.ª título das duas Mem.as de Jaime Franco, quando é levado a suspeitar da inutilidade do seu «relatório» e da sua possível gaguez em face da «força de sistematização e propriedade da linguagem dos filósofos e dos sábios». Divina gaguez essa que «tritura» (um verbo de V.) as mil e uma contradições do suceder íntimo e do pensamento dele, multiplicado e reproduzido até à saciedade e à dor, recaído depois em novas fornalhas do «monstro» e outra vez levado ao tenso fulgor da reflexão.
Paro por aqui, por que me apeteceria não acabar. Não toco nos motivos porque o seu livro não é inteiramente romance. V. conhece-os. O seu livro, aliás, não sendo romance, é muito mais. E não sei porque me surge como uma dessas mensagens de cumieira: umas Confissões de St.º Agostinho, ou assim. De censurável (e até de fastidioso) só certas páginas em que Serra contracena com os rapazes do Grupo e não se sabe porque motivo -- social e lógico motivo -- se zangam, formalizam, melindram ou amuam. Confesso que aí cheguei muitas vezes a enfadar-me e a amarrotar as páginas, furioso consigo... Mas saio do Jogo da Cabra Cega com uma impressão decididamente forte, muitas vezes empolgada, -- e (deixe-me dizer-lhe) com uma sensação de pequenez minha, da mediocridade dos meus meios, que oxalá o seu exemplo, tornado estímulo, ajude a transformar nalguma coisa de melhor. Um grande abraço do
Nemésio.


Publicada pelo grande regiano que é Eugénio Lisboa, num livro de ensaios que é, também ele, um extraordinário testemunho de agudeza crítica, O Objecto Celebrado, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1999.


Nota - Carta empolgante de Nemésio, com mais de meio livro lido, esse inovador Jogo da Cabra Cega, de Régio, acabado de publicar, e cujo destino seria o da apreensão. Empolgante, nem tanto pelo entusiasmo, contido por vezes, de Nemésio, mas pelo espectáculo que dá do scholar em acção judicativa -- esse mesmo que dez anos mais tarde faria aparecer um dos maiores livros da nossa literatura, Mau Tempo no Canal

quarta-feira, 8 de junho de 2016

16 de Maio de 1906: D. Carlos I a João Franco

I noute.
16 -- 5 -- 906
Meu querido João Franco

Tendo o Presidente do Conselho, Cons.º Hintze Ribeiro, acabado neste momento, por carta que acabo de receber e por motivos... que de viva voz te exporei, de depor nas minhas mãos a demissão do Ministério, e desejando eu que neste momento te encarregues da formação do novo ministério, desejo que aqui venhas falar-me, logo possas, e quanto mais cedo melhor.
Há muito a fazer e temos, para bem do País, que seguir por caminho diferente daquelle trilhado até hoje; para isso conto contigo e com a tua lealdade e dedicação, como tu podes contar com o meu auxilio e com toda a força que te devo dar.
Sempre teu
Amigo verdadeiro
Carlos R.


Cartas d'El-Rei D. Carlos I a João Franco Castello-Branco Seu Ultimo Presidente do Conselho
Lisboa, Aillaud & Bertrand, 1924.

Nota - Deve ter feito algum furor, em 1924, quando João Franco, um dos homens políticos mais odiados da História do Portugal contemporâneo, resolveu publicar e comentar as cartas que D. Carlos lhe enviara, desde o convite para formar gabinete, pelo impasse criado pelos partidos tradicionais, fautores do fim da monarquia portuguesa, que em breve eclodiria. Independentemente das intenções e autojustificações, o que interessa é o conjunto de cartas que revelam um rei que pouco tem que ver com o boneco, entre o pândego e torpe, que o republicanismo panfletário dele quis fazer.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Espinho, 12 de Março de 1905: Manuel Laranjeira a João de Barros



Ex.mo Sr. João de Barros:




Um número da sua revista, que me chega agora à mão, veio bruscamente lembrar-me que lhe sou devedor de tanta coisa prometida! e devedor que se está comportando dum modo bem singular.
Peço-lhe que me creia: eu não tive o mais leve intuito em desconsiderá-lo com o meu silêncio e nem sequer tive o intuito a furtar-me a pagar-lhe o que lhe prometi e devo. Isto em mim agora não é alijar uma responsabilidade de mau pagador: é a verdade. Se me conhecesse intimamente estou certo que V. Exª. não só explicaria e perdoaria o meu silêncio amigo (numa significação bem diferente duma cursilería que para aí se chama amizade). Todos nós temos, dormitando no fundo do nosso ser, o nosso demónio (até Antero e Sócrates, que foram integrais como deuses, tinham cada um o seu) a que a psiquiatria de agora chama insultuosamente neurastenia, nevrose, psicastenia... -- e que sei eu? Quando um demónio desperta e reivindica os seus direitos ferocíssimos (ferocíssimos para o nosso pobre ser que tem de sofrê-los) nós esquecemo-nos de tudo -- até de pagar o que devemos. Exponho-lhe estas coisas íntimas e lastimosas, porque estou certo de que me dirijo a um espírito capaz de as compreender. Doutro modo, se, em vez de tratar de si, se tratasse duma criatura vulgar como a abjecção da vida, creia: eu prolongaria indefinidamente o meu silêncio... -- et je m'en foutrais.
Eu desejava dizer-lhe muitas coisas sobre a sua magnífica plaquette dramática (dramática, não; lírica, bela e intensamente lírica); mas teria de ser longo e maçador. Sendo-lhe a si (devendo ser-lhe!) demais a mais indiferente a minha opinião sobre o valor artístico dela. De resto, uma opinião, boa ou má, seja de quem for, sobre uma obra de arte, não a desnivelará uma linha sequer do lugar justo que o seu valor real lhe marcou. Ninguém, nem Deus (refiro-me a Deus num sentido metafórico!), seria capaz de anular um átomo ao valor da obra shakespeariana, ou de pôr um átomo de génio nos medíocres furtos do Sr. J. D. Uma obra é o que é -- diga-se dela o que se disser. A crítica é apenas um comentário que traduz uma impressão ou uma análise: pode explicar a obra de arte, mas nunca validá-la ou invalidá-la. Nestes termos, a crítica, para o autor da obra de arte, não é lisonjeira, nem agressiva: é indiferente (deve sê-lo!). Por isso não estou a massacrá-lo com a minha admiração.
E quando solverei eu a grande dívida de enviar-lhe o artigo prometido?
Quando o meu demónio deixar.

Espinho, 12 de Março de 1905.
Criado sem préstimo
M.to Ob.do e Admirador

Manuel Laranjeira






Cartas (edição de Ramiro Mourão, 1943)

Nota - Carta extraordinária de um espírito brilhante e torturado. Por um lado, pela forma como se expõe a João de Barros na sua assustadora (sabêmo-lo suicida) vulnerabilidade; por outro, no seu agudíssimo conceito sobre a recepção literária e as suas óbvias fragilidades. A revista referida é Arte e Vida, dirigida pelo destinatário; "J. D." -- trata-se, evidentemente, de Júlio Dantas.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

S. Miguel de Seide, 17 de Abril de 1870: Camilo Castelo Branco a destinatário não-identificado

Ex.mo Snr.

Se vê que a minha carta não tem muito descuidos gramaticais, pode publicá-la. Não me lembro se há lá coisa que moleste o próximo; se vê que há trace. V. Ex.ª não deve ignorar que eu acato o próximo e só por descuido lhe tenho assacado aleives que me trazem assaz penitenciado.
Agradeço-lhe a estimação que dá ao futilíssimo livro dos Brilhantes do Brasileiro. Parece-me que só tem uma dúzia de paginas sofríeis, são as últimas que me saíram da alma com lágrimas. As outras são pura chalaça -- o espírito português, único a meu ver, que pode sair das nossas oficinas de caricaturista.
A nossa sociedade não dá para mais. Se tirarem a Portugal, o brasileiro e ao Jardim das Plantas, de Paris, os ursos, não há aí que ver. (Esta carta faça-me o favor de a não publicar. Isto entre nós é maledicência muito à puridade).
Dê-me as suas ordens.
De V. Ex.ª
adm.or afectivo e ob.do

Camilo Castelo Branco
S. M. de Seide, 17 de Abril 70.






Publicada por António Cabral, camiliano e queirosiano de mérito (pertence-lhe a primeira biografia de Eça de Queirós publicada em Portugal, datada de 1916), em Homens e Episódios Inolvidáveis (1947).

Nota -  Carta cujo destinatário não está identificado, muito divertida, pelos conceitos de autoapreciação de Camilo e pela forma desprendida com que se refere à narrativa publicada no ano anterior.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1934: Jorge Amado a Ferreira de Castro

Rio de Janeiro, 10 de Setembro de 1934.


Meu caro Ferreira de Castro.

Acabo de voltar ao Rio e encontrei na Ariel a sua última carta. Agradeço os seus conceitos sobre Cacau Suor.
Venho de passar quatro meses na Baía, recolhendo um resto de material para um romance sobre negros. Chamar-se-á Jubiabá, nome de um macumbeiro de lá e espero fazer um livro forte, fixando nas duas primeiras partes -- Baía de Todos os Santos e --Grande Circo Internacional -- todo o pitoresco do negro baiano -- música, religião, candomblé e macumba, farras, canções, conceitos, carnaval místico -- e toda a paradoxal alma do negro -- raça liberta, raça das grandes gargalhadas, das grandes mentiras e raça ainda escrava do branco, fiel como cão, trazendo nas costas e na alma as marcas do chicote do Sinhó Branco. A terceira parte --A greve -- será a visão da libertação integral do negro pela sua proletarização integral. Que acha v. do plano?
Lhe envio um Boletim de Ariel onde falo em V. Aliás a nota está besta. Mas vale a intenção. V. recebeu meu artigo sobre Terra Fria? Acuse o recebimento.
Mande dizer o que v. está fazendo. Qual o livro que o preocupa no momento? V. tem um grande público aqui no Brasil. Aliás porque v. não envia pro Ariel uma nota sobre a nova literatura de Portugal? Aqui há um certo movimento intelectual que está fazendo alguma coisa. O público nos apoia intensamente. Compra nossos livros. A crítica, é natural, se divide em descomposturas e elogios. Mande o artigo. Porque v. não aparece aqui de novo? Pelo que depreendo dos seus livros v. esteve por aqui em 24. Gostaria de ser seu cicerone numa viagem longa através do Brasil. Vendo as casas coloniais da Baía. Material que em suas mãos daria romances como A Selva.
Me escreva. Agora não saio do Rio tão cedo. O Lins do Rego está em Maceió onde reside. Mandei em carta suas lembranças para ele.
Abrace o seu amigo e admirador
Jorge Amado
Boletim de Ariel
R. Senador Dantas -- 40 -- 5.º
Rio.








Publicada por Ricardo António Alves, Anarquismo e Neo-Realismo -- Ferreira de Castro nas Encruzilhadas do Século (2002) e na 2.ª edição, refundida, de 100 Cartas a Ferreira de Castro (2006).

Nota - Grande documento, não apenas pela evidência do programa literário de Jorge Amado, como pelo que revela da influência que Ferreira de Castro tinha junto dos jovens escritores nordestinos brasileiros, cuja repercussão na geração neo-realista portuguesa é consabida. Castro e Amado começaram a
corresponder-se neste anos de 1934, mas só travariam conhecimento pessoal em 1948, em Paris, quando o autor brasileiro, então um activo militante comunista. teve de exilar-se. Essa amizade manteve-se e fortaleceu-se ao longo das décadas, tendo, por várias vezes e em diversas situações Jorge Amado evocado Ferreira de Castro, comovidamente. Das evidências dessa forte relação, basta lembrar que o o autor de A Selva é o autor português mais referido em Navegação de Cabotagem, as memórias de Jorge Amado.
Ferreira de Castro viria a ser um dos dedicatários de Jubiabá (1935), um dos romances mais marcantes de Amado.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Lisboa, 3 de Abril de 1936: Viana da Mota a Fernando Lopes-Graça


Lisboa 3 de Abril 1936

Meu caro Senhor Graça

O Prado demorou imenso tempo a entrega das suas composições, depois levou ainda bastante tempo a encontrar o Sassetti, por isso só hoje lhe venho participar o que consegui do Sassetti.
Está pronto a editar as suas Variações, pelo gosto de ter nas suas edições uma obra sua, mas diz que o retraimento crescente do público não lhe dá esperança de cobrir as despesas de impressão. E que para obras vocais ainda a venda é mais resumida do que para o piano. Apesar da obrigação que incluímos no Conservatório de se apresentar uma peça portuguesa nos cursos superiores de piano e de canto a venda é limitadíssima porque os alunos emprestam uns aos outros os exemplares.
Sei que este resultado não corresponde ao seu desejo, entretanto aconselho-o a aceitar a proposta do Sassetti, pois, embora as Variações não dêem, no seu entender, o aspecto exacto da sua personalidade actual, não fica por elas mal representado, visto serem m.º características e pessoais.
Infelizmente o Sassetti não pode, atendendo às despesas de impressão e pouca probabilidade de venda suficiente, oferecer-lhe nenhuma comissão.
Diga-me para onde quer que lhe mande as peças de canto e a Cena e dança.
Com os melhores cump.os
            seu ded.º
J. VIANNA DA MOTTA

Não vi ainda a sua nota sobre os Nocturnos. Pode dizer-me em que n.º do Diabo ela saiu? M.º lho agradeceria.

in Fernando Lopes-Graça, Opúsculos (3). 



Nota - Viana da Mota (1869-1948) fora professor de Lopes-Graça (1906-1994) no Conservatório. O tema em apreço é o seu Opus 1, o extraordinário Variações Sobre um Tema Popular Português (1927). Eloquentíssima carta sobra as dificuldades da edição de partituras. Pedro do Prado (1808-1990), compositor, que com Lopes-Graça, Armando José Fernandes e Jorge Croner de Vasconcelos integrou o «Grupo dos Quatro».

quarta-feira, 13 de abril de 2016

[Porto, 1884]: Eça de Queirós a Oliveira Martins

Meu querido Oliveira Martins

A minha sublevação intestinal tem resistido à repressão conservadora do Bismuto. Preciso por isso um desses sujeitos que no tempo de Molière, frequentavam a alta sociedade com uma seringa debaixo do braço, e que nós hoje chamamos um príncipe da ciência. Conheces tu algum bom -- tão bom que distinga realmente o intestino grosso da aorta? O que vem aqui regularmente ao hotel parece-me um mendigo da ignorância.
Se não estiveres em casa, ao receber desta, manda-me pelo correio, num bilhete postal, o nome e adresse do sábio, -- para que eu o mande chamar amanhã.
Excelente o Friedlaender!* Já tenho a minha estradinha romana, com a sua estalagem a sua tabuleta À Grande Cegonha, a sua inscrição convidativa invocando Apolo; e já tenho o aspecto da estrada, com as carroças de viagem, os arrieiros númidas, e os pajens favoritos com o rosto coberto duma máscara de miga seca de pão, para não sofrerem no acetinado da tez, com a humidade ou com o pó! Grande gente!
Manda o nome do sábio.
Teu do C
Queiroz



Correspondência, edição de Beatriz Berrini, Campinas, 1995.

Nota - Um perfeito exemplo do humour queirosiano, a propósito do crónico desarranjo intestinal, vírus provavelmente contraído em Cuba ou no Egipto e que tanto o moerá até à morte. sendo eventualmente a causa dela. (Creio que a doença que vitimou Eça ainda não terá sido desvendada.) Outro aspecto interessante é a menção ao livro do historiador alemão Ludwig Heinrich Friedländer, Quadros dos Costumes Romanos desde Augusto até à Época dos Antoninos (3 vols., 1862-1871), que certamente terá servido como bibliografia para A Relíquia.

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Diu, 25 de Dezembro de 1546: D. João de Castro a seu filho D. Álvaro de Castro

D. Álvaro filho:



O filho del-Rei de Capem me deu uma carta vossa por que soube que estáveis de saúde, com que muito folguei, porque me tardavam já tanto novas de vós que não sabia a que o pusesse. E pois me Deus faz tanta mercê que vos dê saúde, rogo-vos muito que a saibais conservar e vos leixês estar comendo e bebendo e levando muito boa vida.
Dizês-me que vos importunam lá muito religiosos: não é maravilha, porque seu ofício é esse. Se vos muito apertarem, dai convosco em uma quinta com um par de bêbados e em chocarreiro que estê dizendo graças, e leixai-vos estar. Faço-vos saber que o bispo vosso amigo mandou agora cá o velhaco do vigairo a servir a sua vigairaria; e escreve-lhe uma carta que vos lá mostrará Rui Gonçalves das grandes virtudes que havia nelas, a qual eu tenho pera mandar a el-Rei nosso Senhor por grande jóia.
Olhai que cousa é tomar peitas e dádivas. Eu vos prometo que eu jogue um jogo ao bispo com que ele arrenegue e mande por Miguel Vaz vigário-geral e o tenha comigo e faça muitas cousas que el-Rei nosso Senhor manda. Quanto é ao negócio que me tocais em vossa carta, eu vos escreverei depois mais largamente sobre isso.
A benção de Deus e a minha vos envio de Diu, a xxb de Dezembro de 1546.

D. João de Castro

Publicada primeiramente por Elaine Sanceau, cartas de D. João de Castro (1955), foi recolhida por Andrée Rocha nA Epistolografia em Portugal.


Nota - Apesar dos contornos pouco nítidos da carta, pelo menos para um não-especialista na figura e/ou período, os sentimentos de preocupação paternal -- até porque perdera já um filho em campanha militar -- e a cumplicidade maliciosa na estúrdia são suficientemente atemporais para que não leiamos esta missiva regalados pela verdade que encerra.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Lisboa, 10 de Fevereiro de 1926: Reinaldo Ferreira (Repórter X a Ferreira de Castro

ABC 

REVISTA PORTUGUEZA
RUA DO ALECRIM, 65
LISBOA


Lisboa 10 de Fevereiro de 1926.

Meu Caro Ferreira de Castro

sabes o que certa bela camaradagem urdiu, embora sem ousar fincar dente, porque lhes faltam os queixais da verdade -- sobre a minha viagem à Rússia. Estou ensopando uma esponja nas provas e documentos para esfregar o rosto aos mal-intencionados. Para isso falta-me o teu testemunho.
Toda a gente sabe que a polícia de Espanha é das melhores informadas do mundo. A sua espionagem muito se assemelha à de Guepeau, de Moscow. Ela seguiu esta minha viagem. Tu sabes tão bem como eu, porque tiveste uma desagradável ocasião para isso. Peço-te que por carta contes o que leste na ficha que mostraram no comissariado de Madrid.
Teu camarada que muito te estima e admira
Reinaldo Ferreira




100 Cartas a Ferreira de Castro (2.ª edição), Sintra 2006).
(editor: Ricardo António Alves)


Nota - Em 1925, a revista ABC publicava, em números sucessivos que se esgotavam e reimprimiam, uma reportagem do Repórter X à Rússia dos sovietes. Reinaldo era um repórter de mão cheia, ávido de furos de sensação. Muitos puseram em causa a veracidade desse trabalho, mas ninguém conseguiu provar que ele não esteve lá. 

Ainda hoje as opiniões se dividem. Eu, que devo ser das poucas pessoas que neste tempo a leu, inclino-me a dizer que sim, ele foi a essa Rússia, tão misteriosa quanto subversiva. Um dos
argumentos mais convincentes  é o do salvo-conduto que ele invocou ter-lhe sido dado por José Carlos Rates, então secretário-geral do PCP; e que se saiba, não foi por este desmentido. Sobre este facto, do detractores do Repórter X disseram nada.
Se apesar da verosimilhança dos depoimentos, das impressões, da iconografia, a reportagem foi uma fraude, o talento de Reinaldo Ferreira, era e foi enorme, pela cópia de informações, pelo interesse que conseguiu suscitar durante meses na opinião pública portuguesa.
Dos seus contemporâneos, Mário Domingues defendeu a veracidade da mesma, ao contrário de Roberto Nobre. Ferreira de Castro nunca se pronunciou, pelo menos directamente.
O episódio a que alude com a polícia espanhola foi o da detenção de Ferreira de Castro em Madrid, confundido com aquele, por usarem o mesmo apelido, pedindo-lhe que dê testemunho.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Lisboa, 2 de Janeiro de 1900: Teófilo Braga a João de Barros



Lisboa, 2 de Janeiro de 1900
Caro Poeta

Há já alguns dias que recebi o seu primeiro livro de poesias Algas -- tendo é certo lido logo e imediatamente. Leio sempre com curiosidades diversas as composições poéticas que me caem debaixo dos olhos; quando não acho conhecimento de forma, apelo para a originalidade ou a novidade da ideia; quando falha qualquer destes aspectos procuro ainda descobrir o temperamento ou organização do Poeta, que às vezes pode estar abafado pelas correntes batidas de um gosto dominante que o prejudique.
Só no fim deste inquérito é que deixo o livro ou a composição poética. O seu livro das Algas  também passou por este crivo; há ali conhecimento das formas, e há temperamento poético; e é muito, e por isso que promete largas esperanças é que não é já tudo. Para ir mais longe é questão da idade, que lhe há-de dar o contacto da realidade da vida, e de uma filosofia que dê ao seu espírito a visão universal.
Felicita-o com um abraço o seu
admirador e am.º At.º
Teófilo Braga
T. S. Gertrudes, n,º 70.






Publicada por Manuel de Azevedo, Cartas a João de Barros, Lisboa, s.d.


Nota - O velho, e então ainda idolatrado, positivista responde a um jovem poeta de dezanove anos, que acabara de publicar o primeiro livro, Algas, com palavras de apreço e encorajamento, não sem antes discorrer sobre o seu método de avaliação, eloquentemente enunciado... A forma benevolente e pedagógica como o faz -- em 1900, Teófilo era uma espécie de papa dos estudos literários -- é de assinalar. Algas, livro que tenho na minha pequena biblioteca, é uma meritória obra de estreia.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Paris, 25 de Agosto de 1697: José da Cunha Brochado a destinatário não-identificado



Meu Senhor.


Estimo muito as boas novas que Vossa Mercê me dá de se haver recolhido com saúde a sua casa, onde ficará logrando o descanso que por cá lhe faltava.
V. M., que sempre foi injusto venerador das Cortes estrangeiras, me diz que se acha muito só na nossa Corte; porém, nela melhor que nas outras viverá V. M., ainda que em menos concurso com menos concorrentes. A nossa comédia tem menos aparato, mas diverte a menos custo; a nossa praça terá menos passeio, mas tem menos atenções. As damas, que lá são menos expostas, são , por isso, mais dignas do privilégio com que as criou a natureza. As Tulherias, [por] que V. M. suspira tanto, não têm de grande mais que a novidade com que V. M. as via; mas é escusado persuadir este conhecimento a um fidalgo português, cujo génio foi sempre pagar-se mais do pouco, sendo-lhe singular, que do grande, sendo-lhe comum.
Veja V. M. se no meu pouco préstimo pode achar a honra de servi-lo.
Deus guarde a V. M. muitos anos.
25 de Agosto de 1697.

Das Cartas editadas por António Álvaro Dória, em 1944.


Nota -  Missiva a desconhecido, estava então Brochado em Paris, como secretário do embaixador, o 2.º Marquês de Cascais, D. Álvaro Pires de Castro. Muito reveladora da assertividade do diplomata a apreciação sobre a comédia humana em Versalhes, comparando-a com a  da corte de D. Pedro II, tentando consolar um nobre saudoso do fausto  tornado distante -- dum modo que a este não deixaria de ser lisonjeiro --, chegando a ser divertido o modo como procura menorizar a corte de Luís XIV. Fá-lo Brochado por lisonja? Provavelmente não, que ele, muito sério e competente, também não era bom de se assoar; antes por deferência devida -- e porventura sincera -- a quem lhe estava, por estado e condição, acima na pirâmide social, como era de uso na estratificação da época.

sábado, 5 de março de 2016

Nespereira, Guimarães, 28 de Março de 1922: Raul Brandão a Ferreira de Castro

Exmo Senhor Ferreira de Castro



Muito obrigado pelo artigo que escreveu a meu respeito no último número da «A Hora» -- que tenho lido sempre com grande interesse, como leio tudo que é apaixonado e sincero.
São raras efectivamente as pessoas que em Portugal estimam os meus livros, mas essas bastam-me, quando compreendem não o que vale a minha obra necessariamente imperfeita, mas o esforço que faço para arrancar alguns farrapos ao Sonho...
Creia-me sempre
ador e cam.da muito og.º [?]


Raul Brandão
Nespereira
Guimarães
28 de Março de 1922





100 Cartas a Ferreira de Castro (1992, 2.ª ed. 2006).
(editor: Ricardo António Alves)


Nota - Não se conheciam, mas os 11 anos seguintes foram de frequente convívio e admiração.
Foi o escritor português que mais impressionou Ferreira de Castro, é a sua grande referência lusa, como bem viu, antes de todos, Jorge de Sena.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Figueira da Foz, 26 de Junho de 1926: o Visconde da Marinha Grande a seu filho João de Barros

Figueira, 26-6º-1926


Meu querido João

Obrigado pela tua pronta resposta à minha precedente carta, e oxalá que o teu optimismo se realize, mas as prisões já começaram!... Cautela meu João!
E conta sempre comigo para tudo (que não poderá ser muito) que eu possa fazer.
Beija os meus queridos netos e querida Raquel, e a ti, beijo-te
                                                                   e abraço-te de todo o meu coração

                                                                                     Afonso

Faz favor de dar à irrequieta Teresa o papelinho junto e ela que entregue ao [..?]






Publicado por Manuela de Azevedo, Cartas a João de Barros (s.d.), que escreve: «A ternura com que ele se exprime só a um filho muito merecedor se confessa.»


Nota - Testemunho maravilhoso de amor paternal dum velho de 90  anos -- Afonso Ernesto de Barros (1836-1927) ao seu mais do que adulto filho.  João de Barros (1881-1960) fora uma personalidade influente na I República, um dos nomes do ímpeto político do incremento da Instrução Pública que caracterizou essa fase da vida do país, e também ministro dos Negócios Estrangeiros.  Era também um importante poeta, cujo percurso se iniciara ainda durante o regime monárquico. Com o golpe militar de 28 de Maio de 1926, a situação pessoal complicava-se, e seu pai, o Visconde da Marinha Grande, dava conta das suas preocupações.A "irrequieta Teresa" virá a ser mulher de Marcelo Caetano.
                                                                                                              

Penela, 6 de Janeiro de 1443: o Infante D. Pedro ao rei D. Duarte, seu irmão

Muito alto e muito excelente Príncipe, e muito poderoso Senhor

O portador da presente leva a Vossa Mercê o livro que mandastes tornar em esta linguagem ao Prior de S. Jorge, o que foi muito deteudo em tornar por a minha partida de Coimbra, e por as festas que se seguiram. A Vossa Mercê praza de o haver por perdoado. Eu corri, Senhor, este tratado e parece-me que há nele razões muito bem ditadas de amizade; mas não me parecem tais nem tantas que mais e melhores não visse a obrar a Vossa Senhoria, e bem creio que se disto quiserdes fazer livro, por aquilo que a Vossa Mercê pratica e praticou, o podereis escrever de muitos e maravilhosos notados. Bem sou certo, Senhor, que, se achardes amigo semelhante a vós, que podereis mui verdadeiramente ser contados entre os três ou quatro pares de amigos de que se faz menção em aquele tratado, e ainda por dois mais principais. Mas outorgando-vos Deus o estado real, de que, a meu juízo, sois mais digno que homem que eu conheça, tirou-vos nome de amigo ao menos com vossos sujeitos, ficando-vos outro mais alto que é bom e gracioso Rei e Senhor. Porque não sinto que as obras de amizade se possam em seu perfeito grau usar entre senhor e servidores, porque a amizade traz obras de coração voluntarioso e livre. Pois como caberá isto no sujeito que a seu bom senhor é tão obrigado que lhe deve si e quanto possui, em tal maneira que lhe não fica por que possa livremente mostrar sua amizade? Parece-me ainda, Senhor, que o nome de amizade requer igualdança nas pessoas, e cada um verdadeiro amigo deseja de igualar seu amigo em benfeitorias e agradecimentos, e ainda vencê-lo em isto se puder. Pois a desigualdança é tão grande entre Senhor e servidores que parece não cabe entre eles comparação, de si as benfeitorias dos senhores são mui grandes aos servidores, e as maiores que igualmente fazem os servidores são mui pequenas a seus senhores, e quando praz nos senhores acerca de alguns mostrar quanto são poderosos em bem obrar, fazendo-lhes grandes mercês e havendo-lhe singular afeição que terão estes servidores com que conhecer a seus senhores? Eu não sei al se não aparelharem os corpos e as vontades a serem sempre seus e morrerem por eles. E porque tudo isto é devido com razão do bom direito e senhorio, a mim parece que nome de amigos entre eles não pode caber. Eu não entendo, Senhor, por minha escritura, escusar-vos de mais que de nome de amigo; que da vontade, e de saber bem amar, e usar das obras respondentes à verdadeira amizade, a vós dou a vantagem de quantos eu vi. E tanto me parece que em isto sois grande mestre, que perda seria tanta mestria principalmente exercitardes senão àcerca de grandes cousas. E não vejo outros que vos possa dignamente agradecer ao que vós sabereis com ajuda de Deus e podereis merecer senão ele; e de si por ele a reputação de vossos Reinos, em que se compreendem todas as pessoas e estado deles. E em isto firmando vosso amor, sempre achareis quem vos ame mais do que vós amardes, e quem se lembre de vossas boas obras  e conheça quanto são bem feitas, e vos galardoe mais grandemente do que requerem vossos merecimentos; e estes me parece que são dos mais principais frutos de amizade.
Senhor, este livro que vos envia o prior de S. Jorge repreende tanto a louvaminha que, se eu não entendesse que aquele nome significa louvor mentideiro ou louvor verdadeiro com tenção maliciosa, eu não fora ousado tal carta escrever. Mas porque eu tenho que aquilo significa que o que em esta é conteúdo em vosso louvor eu creio de coração e em todo o lugar o afirmo pela boca, quando se requer em tais cousas falar, porém não hei empacho de o escrever com a mão, de mais que a tenção é por virtude a crescer em vós e continuadamente melhorar, o que o todo poderoso Deus vos outorgue a seu serviço e a vossa grande honra. Escrita em Penela, a 6 de Janeiro de 1434.

Do Infante D. Pedro




Recolhida para A Epistolografia em Portugal por Andrée Rocha nas Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa (1739-1748), I, Liv. III, do operoso D. António Caetano de Sousa (1674-1759).


Nota - Uma carta que reflecte o pensamento do Infante D. Pedro (1392-1449) já como homem do Renascimento, a propósito da sua concepção do lugar central e pinacular do soberano -- neste caso, o seu irmão, o rei D. Duarte (1391-1438) --, e que nos dez anos de regência, na menoridade do sobrinho (e genro), D. Afonso V, pretendeu exercer, limitando o poder senhorial e reforçando o da corte. Exercício que lhe custou a intriga e a inimizade do círculo real, o desterro e a morte, na batalha de Alfarrobeira, contra o exército desse D. Afonso V, o nosso último rei medieval. O livro em apreço é o tratado Da Amizade, de Cícero.



terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Coimbra, 18 de Fevereiro de 1927: José Régio a João Gaspar Simões

Coimbra, 18 de Fevereiro de 1927

Meu caro Simões:

Recebi  a sua carta, justamente quando pensava em lhe escrever. Muito lhe agradeço o ter pensado tanto no jornal e em mim que se me antecipou. As notícias são: O Branquinho partiu há 8 dias para Lisboa, de modo que fiquei sozinho em Coimbra a preocupar-me com a saída do primeiro número da Presença. Escrevi a alguns presuntivos colaboradores da dita, e recebi: Versos do António Navarro (de que Você gostará mais que do Soneto da Contemporânea); informação do Mário Saa de me mandar brevemente qualquer coisa; informação do Martins de Carvalho de mandar também brevemente um trecho da sua dissertação; esperanças do meu irmão de também brevemente mandar um desenho com algumas palavras sobre arte. Logo que todos estes «brevemente» sejam «presente» -- o número sairá. Além desta colaboração, o primeiro número terá: Versos do Branquinho, do Bettencourt e do Fausto; prosa sua, do Almada e minha. Como vê, já a dificuldade de encher espaço vai sendo substituída pelo do espaço para conter... No entanto tudo se arranjará, e creio que o primeiro número da «Presença» gritará de facto: Presente! Peço-lhe para mandar o seu artigo logo, mesmo logo, que esteja pronto. Queria escrever-lhe mais, mas escrevo-lhe da Central, e com uma pena de tinta permanente... Quer isto dizer que a tinta me falta a cada palavra que escrevo, porque nunca me afiz a semelhantes viadutos de tinta. Escreva, sim? e, uma pergunta: Quando vem dar uma fugida cá?
Saudades dos amigos, e um abraço do
José Maria dos Reis Pereira


in João Gaspar, José Régio e a História do Movimento da «presença» , Porto, 1977


Nota - Tem essencialmente interesse documental, porque trata do início da presença, uma das mais importantes, talvez a mais importante e interessante revista literária portuguesa do século XX, cujo n.º 1 sairia a 10 de Março seguinte. 

O irmão de Régio era, obviamente, o pintor Júlio [Maria dos Reis Pereira], que foi também o grande poeta Saul Dias.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Roma, 1 de Janeiro de 1675: o Padre António Vieira a Duarte Ribeiro de Macedo (1.I.1675)



Senhor meu:

     Escrevo estas poucas regras no primeiro dia do ano, o qual me acha na cama, aonde me tem reduzido o achaque do estômago, de que no passado dei conta a V. S.ª. E, depois de desejar a V. S.ª muitos anos e felicíssimos, temo muito que este seja o último da minha vida, principalmente se, na consulta que amanhã se há-de fazer dos médicos, eles não acabarem de se persuadir que o clima de Roma é a causa principal e ordinária deste achaque, e não me receitarem a mudança de ares, não passando aos vizinhos por alguns dias, como querem os amigos, mas caminhando aos pátrios. Pode ser, como eu espero, que seja providência divina, para que assim cessem os impedimentos, e se componham os que me detêm aqui, como me querem antes vivo em Portugal que morto em Roma. Se bem não deixo de considerar quão pouco para desejar nem viver está hoje aquela terra, e quantos desgostos e perigos pode temer nela quem incriminado está, posto que falsamente, no delito que lá se começou e aqui se prossegue, com terríveis ameaças e profecias fulminadas contra todos os cúmplices dele. O nosso Residente é [tão] prudente que, sem embargo das repetidas ordens que tem de não falar por uma nem por outra parte, as interpreta de tal modo que no público e no particular se mostra em tudo parcial dos dois enviados. Mas que muito, se em Lisboa foi chamado à Inquisição um dos nossos maiores ministros, para ali se achar em um conselho, e do que nele se praticou e resolveu foi avisar a Rainha Nossa Senhora que, se S. A. não acudisse a impedir algumas ordens, ou já notificadas ou expedidas de Roma em ordem à suspensão de actos de Fé e semelhantes execuções enquanto se não decidisse o pleito, soubesse que estava em risco de haver um motim. Deste aviso e deste conselho, e de entrar nele um Conselheiro de Estado, e de ter confiança para se entremeter em tudo isto sem licença nem autoridade, e de dizer o que disse e ameaçar o que ameaçou, sem se puxar por este fio e desenovelar uma tal matéria, julgue V. S.ª o que lhe parecer, que eu julgo sòmente o que a V. S.ª parece, e quanto para temer é o mesmo silêncio e quietação, de que se dá por tão seguro o ministro que a V. S.ª escreve.
     De novo só posso dizer o que também me acrescenta não pouco este temor, e com o mesmo me o escrevem de Lisboa concordemente três pessoas, que eu reputo pelas mais zelosas ao serviço de S. A. e bem do Reino, sem mais interesse que o mesmo bem: e é que, poucos dias antes do último correio, partindo aos 13 de Novembro, se tinha ouvido em Lisboa um Jonas pregando: Adhuc quadraginta dies et Ninive subvertetur. Este homem, que pode ser seja conhecido de V. S.ª, é um capitão, grande poeta vulgar, chamado antigamente António da Fonseca, o qual se meteu frade de S. Francisco haverá oito ou dez anos, e hoje se chama Frei António das Chagas. Haverá dois ou três anos começou a pregar apostòlicamente, exortando à penitência, mas com cerimónias não usadas dos Apóstolos, como mostrar do púlpito uma caveira, tocar uma campainha, tirar muitas vezes um Cristo, dar-se bofetadas, e outras demonstrações semelhantes, com as quais, e com a opinião de santo, leva após si toda Lisboa.
     Prega principalmente na igreja do Hospital, concorrem fidalgos e senhoras em grande número, e uma vez lançou do púlpito entre elas um crucifixo, a que se seguiram grandes clamores; e com isto se entende que o dito pregador tem na mão os corações de todos, e os poderá mover a quanto quiser, temendo-se que, se seguir a opinião ou apreensão vulgar, e se meter no ponto da Fé, poderá ocasionar algum alvoroço semelhante ao do tempo de El-Rei D. Manuel, não longe do mesmo lugar onde prega. E verdadeiramente que a consideração do lugar, a circunstância do tempo, a disposição dos ouvintes; e ser o Jonas soldado, poeta e frade; e não acudirem a estas extravagâncias os que costumam fazê-lo com menores fundamentos; prenúncios podem ser de alguma tempestade, que, se não se levantou nos primeiros dias, pode ser que se vá armando para o fim dos quarenta, que tantos são os sermões que tem prometido, e vai sucessivamente continuando todos os dias.
     Algum ou alguns dos mesmos que me fazem este aviso propuseram o seu temor a quem devera remediar, mas sem efeitos. Assim costumam ser os das fatalidades, e a minha melancolia é mais pronta a querer em desgraças que em felicidades.

     Deus guarde a V. S.ª como desejo.

     Roma, 1.º de Janeiro de 1675 -- Capelão e criado de V. S.ª

António Vieira



In Andrée Rocha, A Epistolografia em Portugal (2.ª ed., 1951), recolhida na edição Sá da Costa da Cartas (1951), por António Sérgio e Hernâni Cidade.


Nota - Dirigida a Duarte Ribeiro de Macedo, então enviado em França, excelente sobre o ambiente persecutório e o poder da Inquisição, cuja chaga purulenta ainda hoje se escarva e se escarra na tristíssima sociedade portuguesa. 

O retrato do fascinante Frei António das Chagas é esplêndido, bem como a arguta noção de Vieira dos perigos do prègador iluminado e alucinado -- qual pastor tele-evangelista --, o receio pelo que, às mãos da turba poderiam sofrer os cristãos-novos; evocando o massacre dos judeus ocorrido em Lisboa no reinado de D. Manuel I, cujo memorial há uma década foi erigido nesse Largo de São Domingos de nefanda memória, e que hoje, ironia da História, é local de cruzamento étnico das mais desvairadas religiões e dos que não têm religião nenhuma.