quarta-feira, 2 de março de 2016

Penela, 6 de Janeiro de 1443: o Infante D. Pedro ao rei D. Duarte, seu irmão

Muito alto e muito excelente Príncipe, e muito poderoso Senhor

O portador da presente leva a Vossa Mercê o livro que mandastes tornar em esta linguagem ao Prior de S. Jorge, o que foi muito deteudo em tornar por a minha partida de Coimbra, e por as festas que se seguiram. A Vossa Mercê praza de o haver por perdoado. Eu corri, Senhor, este tratado e parece-me que há nele razões muito bem ditadas de amizade; mas não me parecem tais nem tantas que mais e melhores não visse a obrar a Vossa Senhoria, e bem creio que se disto quiserdes fazer livro, por aquilo que a Vossa Mercê pratica e praticou, o podereis escrever de muitos e maravilhosos notados. Bem sou certo, Senhor, que, se achardes amigo semelhante a vós, que podereis mui verdadeiramente ser contados entre os três ou quatro pares de amigos de que se faz menção em aquele tratado, e ainda por dois mais principais. Mas outorgando-vos Deus o estado real, de que, a meu juízo, sois mais digno que homem que eu conheça, tirou-vos nome de amigo ao menos com vossos sujeitos, ficando-vos outro mais alto que é bom e gracioso Rei e Senhor. Porque não sinto que as obras de amizade se possam em seu perfeito grau usar entre senhor e servidores, porque a amizade traz obras de coração voluntarioso e livre. Pois como caberá isto no sujeito que a seu bom senhor é tão obrigado que lhe deve si e quanto possui, em tal maneira que lhe não fica por que possa livremente mostrar sua amizade? Parece-me ainda, Senhor, que o nome de amizade requer igualdança nas pessoas, e cada um verdadeiro amigo deseja de igualar seu amigo em benfeitorias e agradecimentos, e ainda vencê-lo em isto se puder. Pois a desigualdança é tão grande entre Senhor e servidores que parece não cabe entre eles comparação, de si as benfeitorias dos senhores são mui grandes aos servidores, e as maiores que igualmente fazem os servidores são mui pequenas a seus senhores, e quando praz nos senhores acerca de alguns mostrar quanto são poderosos em bem obrar, fazendo-lhes grandes mercês e havendo-lhe singular afeição que terão estes servidores com que conhecer a seus senhores? Eu não sei al se não aparelharem os corpos e as vontades a serem sempre seus e morrerem por eles. E porque tudo isto é devido com razão do bom direito e senhorio, a mim parece que nome de amigos entre eles não pode caber. Eu não entendo, Senhor, por minha escritura, escusar-vos de mais que de nome de amigo; que da vontade, e de saber bem amar, e usar das obras respondentes à verdadeira amizade, a vós dou a vantagem de quantos eu vi. E tanto me parece que em isto sois grande mestre, que perda seria tanta mestria principalmente exercitardes senão àcerca de grandes cousas. E não vejo outros que vos possa dignamente agradecer ao que vós sabereis com ajuda de Deus e podereis merecer senão ele; e de si por ele a reputação de vossos Reinos, em que se compreendem todas as pessoas e estado deles. E em isto firmando vosso amor, sempre achareis quem vos ame mais do que vós amardes, e quem se lembre de vossas boas obras  e conheça quanto são bem feitas, e vos galardoe mais grandemente do que requerem vossos merecimentos; e estes me parece que são dos mais principais frutos de amizade.
Senhor, este livro que vos envia o prior de S. Jorge repreende tanto a louvaminha que, se eu não entendesse que aquele nome significa louvor mentideiro ou louvor verdadeiro com tenção maliciosa, eu não fora ousado tal carta escrever. Mas porque eu tenho que aquilo significa que o que em esta é conteúdo em vosso louvor eu creio de coração e em todo o lugar o afirmo pela boca, quando se requer em tais cousas falar, porém não hei empacho de o escrever com a mão, de mais que a tenção é por virtude a crescer em vós e continuadamente melhorar, o que o todo poderoso Deus vos outorgue a seu serviço e a vossa grande honra. Escrita em Penela, a 6 de Janeiro de 1434.

Do Infante D. Pedro




Recolhida para A Epistolografia em Portugal por Andrée Rocha nas Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa (1739-1748), I, Liv. III, do operoso D. António Caetano de Sousa (1674-1759).


Nota - Uma carta que reflecte o pensamento do Infante D. Pedro (1392-1449) já como homem do Renascimento, a propósito da sua concepção do lugar central e pinacular do soberano -- neste caso, o seu irmão, o rei D. Duarte (1391-1438) --, e que nos dez anos de regência, na menoridade do sobrinho (e genro), D. Afonso V, pretendeu exercer, limitando o poder senhorial e reforçando o da corte. Exercício que lhe custou a intriga e a inimizade do círculo real, o desterro e a morte, na batalha de Alfarrobeira, contra o exército desse D. Afonso V, o nosso último rei medieval. O livro em apreço é o tratado Da Amizade, de Cícero.



Sem comentários:

Enviar um comentário